27.5.07

Daunbailó (Jim Jarmusch)

Jim Jarmusch deu as caras no cenário independente do cinema americano em 1983, com Estranhos no Paraíso, que se tornou altamente cultuado e lhe abriu as portas para seu próximo longa, a idiossincrática comédia Daunbailó. Apesar destes dois filmes se divergirem bastante em tom, ambos apresentam uma marca clássica de Jarmusch, que são personagens marginalizados.
A estória é sobre dois sujeitos que, ao caírem numa armação da polícia, vão dividir uma cela juntos na prisão. Jack é um cafetão de baixa categoria que se envolve erroenamente num esquema de corrupção de menores, enquanto Zack é um ex-radialista que, expulso de casa pela namorada, aceita um serviço de transporte de um carro, sem saber que tinha uma pessoa no porta-malas; dois seres que vivem nos limites da sociedade, longe dos ideais do sonho americano. Muito além do nome, os dois se parecem tanto no jeito de ser que imediatamente se odeiam, como se olhassem num espelho e vissem tudo que há de condenável na sociedade, e que os botou na cadeia, à princípio. O clima pesado se alastra durante dias a semanas na prisão, que é marcante no começo da projeção (que, aliás, retrata Nova Orleans da mesma maneira que os protagonistas, uma cidade fria, suja e escura, longe dos shows de jazz e clima de desfile de costume), até a chegada do terceiro companheiro de cela, o franzino italiano Roberto.
Roberto Benigni, em começo de carreira, já retrata desde lá o mesmo tipo de personagem que o consagraria anos mais tarde, e transforma Roberto num divisor de águas no filme. O tagarela e por vezes irritante italiano logo se transforma num ser que tanto Jack quanto Zack podem odiar mutuamente, mas sua simpatia aos poucos o aproxima dos dois. Sendo o único lá a realmente pagar por um crime (um homicídio que, à melhor maneira de Chaves, foi 'sem querer querendo'), Roberto adiciona um humor tão inconsequente e inocente que muda todos os rumos da projeção. Para começar, o cenário muda, já que ele arranja um jeito de fugir da prisão (uma fuga que nunca é mostrada, o que acaba tendo um resultado muito mais positivo que caso fosse inventado uma maneira mirabolante de escapar), e agora os três amigos - na definição de Roberto - estão à solta no meio de um enorme pântano, sempre a correr. Essa segunda parte do filme apresenta-se de uma maneira bem mais leve e descontraída, a fotografia fica mais clara, as cenas têm menor duração e o ritmo é mais acelerado.
Mas enganam-se eles achando que estão livres. Simplesmente mudaram de prisão (inclusive, a cabana em que eles passam a primeira noite é quase idêntica à antiga cela). Perdidos no meio do nada, sem saber para onde ir, a aliança dos três parece estar sempre à beira do colapso, e por diversas vezes chega a acabar, mas eles sempre voltam, centrados na figura de Roberto. Este, aliás, torna-se o personagem mais interessante do longa. Perdido numa cultura estranha, ele é um personagem em desespero, e o mais marginalizado de todos. Falando apenas o inglês mais básico, a língua é um constante problema, que o faz andar com um caderno de notas com piadinhas para tentar se socializar; durante uma discussão sobre gritos na prisão, ele lança um verso: "i scream, you scream, we all scream, for ice cream" ("eu grito, você grita, todos gritamos por sorvete") que, de tão ingênuo, acaba conquistando os dois companheiros, e vira uma espécie de hino-desabafo na cadeia. Pode-se notar também sua aparente tristeza e decepção quando é deixado para trás por Jack e Zack, e fica preso entre um rio (que não pode atravessar por não saber nadar) e os latidos de cães se aproximando (sua maior fobia), o que prova a escolha acertada de Benigni, que vai bem além de servir como um alívio cômico caricato. Ainda assim, ele prova ser o mais capaz dos três, já que sempre procura fazer todos ficarem unidos, e é ele quem acha a saída da cadeia, caça e assa comida à noite (numa cena hilária, totalmente improvisada pelo ator), e consegue um abrigo com uma italiana, que logo vira sua esposa (na verdade, esposa do Benigni na vida real, o que fica óbvio devido à afinidade dos dois na cena de dança). Jack e Zack não são propriamente atores - John Lurie, que interpreta Jack, já havia trabalhado em Estranhos no Paraíso - e sim compositores (eles que compõem a bela trilha sonora do filme), mas isto não atrapalha o trabalho deles, que retratam bem as divergências dos dois até o final do filme.
A fotografia de Robbie Müller (que fotografou Paris, Texas) também é um show à parte. Sempre trabalhando com um chiaroscuro de bastante contraste, dá o tom certo ao filme apenas mexendo nas variações de brilho (ao fim da projeção, está tudo tão claro que parece ter vazado luz no filme). Sempre trabalhando com um humor calmo, constituído de longas tomadas (herança de Jacques Tati, talvez?), é certamente o filme mais engraçado do diretor. Aliás, a brincadeira com o título original, 'Down by Law', que em português virou 'Daunbailó', entra bem no clima do filme, e parece ter sido criada de encomenda pelo próprio diretor. Estranhos no Paraíso pode até ser considerado um filme mais importante, de vanguarda, marco zero e tal, mas foi com Daunbailó que Jarmusch se firmou de vez no novo cinema independente americano.

Por Roberto Ribeiro




Direção: Jim Jarmusch»
Origem:
Alemanha/Estados Unidos»
Duração:
107 minutos


Trailer:




» Sinopse: O filme é sobre dois sujeitos que, ao caírem numa armação da polícia, vão dividir uma cela juntos na prisão. Jack é um cafetão de baixa categoria que se envolve erroenamente num esquema de corrupção de menores, enquanto Zack é um ex-radialista que, expulso de casa pela namorada, aceita um serviço de transportar um carro, sem saber que tinha uma pessoa no porta-malas.

Elenco ::. Roberto Benigni, Nicoletta Braschi, Tom Waits, John Lurie, Ellen Barkin, Billie Neal


Quando: Dia 02/06
Hora: 19:30hrs
ENTRADA GRÁTIS
No SESC - CASCAVEL (Endereço no Topo da Página)

2 comentários:

Anônimo disse...

O próprio Jarmusch sendo ponto de referência do filme Daunbailó, podemos fazer um paralelo interessante entre o filme e um conto de fadas moderno e natural.
A história cuida para que Zack, Jack e Roberto se encontrem na prisão, porém a prisão existe desde o primeiro frame exibido, num travelling, Jarmusch mostra o lado B da América ao som de Tom Waits (que interpreta Zack), uma América que não gosta de ser vista assim, a fotografia surpreende o país como se ele acabasse de sair do banho, sem maquilagem, sem artifícios.
Os personagens de Jack e Zack são marginalizados porém acabam presos por crimes que não cometeram (é preciso uma identificação). Os dois só se conhecem na prisão, na qual dividem a mesma cela. Os dois passam vários dias no mesmo ambiente (contados pelos típicos riscos de giz na parede) e rarmente se comunicam, quando sim, disputam e lutam (um paralelo interessante da mentalidade americana), só vão realmente se comunicar com a chegada do verborrágico e por vezes incoveniente italiano Roberto (Benigni).
Bom, o paralelo da falta de comunicação estadunidense já foi metaforizado. Mas numa metáfora ainda mais bela, o italiano, doravante chamado "estrangeiro" pois é esse o papel que representa, rouba o giz de Zack e desenha uma janela na parede da prisão, dando uma bonita simbologia da esperança nos sonhos ainda presentes no recém chegado à "terra dos sonhos", tanto que é ele, o estrangeiro, que bola o plano de fuga, mesmo desacreditado pelos outros dois.
A partir de agora veremos um pouco de solidariedade (melhor explicada por Lays abaixo) entre os três.
Logo que fogem, seu primeiro refúgio é uma cabana com as mesmas dimensões e organização de sua cela, porém, a janela está lá.
Uma breve concretização do sonho de Roberto, que como bom estrangeiro cresceu assistindo filmes americanos e mergulha sua filosofia de ação neles (além de "Bob" Whitman). Para cada dificuldade, Roberto tem uma solução tirada dos filmes que logo são frustradas pelos outros dois que cresceram na subcultura TV-dinner onde perderam todos seus sonhos de conquista, ou pelos menos os deixaram atrofiados em algum lugar inacessível.
Uma coisa a se notar é que na fuga os três em vários momentos têm a sensação de estar andando em círculos, ou seja a jornada será para eles, uma eterna estrada circular.
Quando finalmente encontram um lugar que poderia os aquecer e matar sua fome, o que passa na cabeça dos americanos? "Isso é uma miragem ou uma armadilha, prefiro não ir, manda o estrangeiro"
Pois bem, Roberto vai e descobre o amor de sua vida, Nicoleta, uma italiana também recém-chegada aos EUA (aliás, um lampejo muito bem utilizado, foi manter os nomes dos estrangeiros, o mesmo dos atores, ou seja, Roberto é Roberto, Nicoleta é Nicoleta, o que os torna reais, ainda imaculados num mundo de personagens de ficção, o que foi usado pelo diretor em outros filmes como "Coffe and Cigarettes")
Depois de comerem se aquecerem e dormirem, Roberto solta "finalmente encontrei meu lar" o 'motto' da Estátua da Liberdade, pois seu lar é ao lado de uma conterrânea na "terra das oportunidades". Encerra-se o conto de fadas, propriamente, e um conto de fadas sempre acaba com uma dança entre o príncipe e a princesa, aqui não é diferente, ao som de uma música da época dourada norte-americana, Roberto e Nicoleta dançam desajeitados, quase ridiculos, porém apaixonados e realizados.
Zack e Jack partem, eternos rivais, com roupas que em muito lembram as própria roupas do começo do filme, separando-se numa encruzilhada sem nem mesmo saber onde vão chegar, continuando até alegoricamente a sua estrada circular.
Aí voltamos lá no começo, usando o próprio Jarmusch como ponto de referência. A mesma indignição que JJ tem do cinema hegemônico americano, a mesma revolta quando diz "eu aprendi mais de cinema no ponto de ônibus, do que na cinemateca". Essa agulhada em tudo o que veio antes está exemplarmente dada em forma de filme com Daunbailó.
O último frame do filme é a própria encruzilhada, deixando uma indagação seca, ficcional, redundante e desesperançada na cabeça das personagens que habitam a "terra da liberdade".

Anônimo disse...

A principal relação a ser feita sobre o comportamento dos três personagens de Daunbailó, trata-se novamente da leitura durkheiminiana sobre a organização social, ou seja, a determinação de Durkheim que compreende a organização de qualquer grupo enquanto tal em nome de suas ações, a partir do princípio da solidariedade.

Assim, quando as ações sociais correspondem ao sucesso, ou tentativa de sucesso na busca de um deteminado resultado, o grupo funciona como um organismo só, uma "pessoa", fazendo com que os membros abram mão de suas individualidades e vontades próprias em nome do resultado buscado pelo todo.

Esta solidariedade, segundo Durkheim, pode ser dividida em dois tipos, sendo a primeira denominada Solidariedade Mecânica e a segunda Solidariedade Orgânica, acontecendo respectivamente em uniões entre iguais e diferentes. Desta forma, uma sociedade "fria", um clã, uma aldeia, um time de futebol em busca do gol, funciona a partir da Solidariedade Mecânica, pois os iguais (família, grupo étnico, jogadores) mobilizam-se em nome do resultado considerando a mesma matriz de que foram concebidos. No segundo caso, que manifesta-se em sociedades ditas "complexas", a mobilização acontece entre diferentes também em nome de um resultado comum, tal qual nos movimentos sociais por exemplo, e no relacionamento entre os três personsagens.

Apesar de na situação da fuga os mesmos estarem numa relação de iguais (presos), eles abrem mão de suas individualidades, de suas matrizes e de suas vontades em nome do bem maior que é a fuga. Antes disso inclusive, a prisão dos mesmos (desconsiderando a de Roberto, que não se sabe bem ao certo o motivo que a causou) pode ser consideradas dentro desta mesma linha de raciocínio, sabendo-se que houve, por parte de seus desafetos, uma organização solidária (também mecânica) para o resultado positivo no golpe sofrido por eles (Zack e Jack).

Enfim, levando em conta a consideração feita sobre o aspecto prisional da realidade fílmica considerado no comentário anterior, esta solidariedade aparece como uma possibilidade de superação daquele, quando os três abrem, em parte, mão de suas vontades individuais que caminham claramente na procura por independência (ver comentário de Acossado) para primeiramente livrarem-se de suas limitações exteriores e consequentemente ditarem suas próprias regras; essa, muito bem representada por sua vez, pelo destino que cada um toma para si: o amor da estrangeira, Texas e Los Angeles.
Neste momento da separação, os dois últimos (zack e Jack) que mantiveram-se separados durante todo o percurso, realizam uma troca simbólica na encruzilhada representada pelas roupas, levando cada qual um elemento daquela solidariedade de que foram sujeitos. Este é um elemento importante para a presença dos três neste universo limítrofe, sabendo-se a presença ou não da caixa de fósforos sempre como marco de algum tipo de relacionamento entre os mesmos.

"Piso pesado e sinistro como o sol que vem sem dó
Quando eu tô preso em preto e branco como em Daunbailó
Procurando e destruindo falsos MCs
Nocivos como os governantes do nosso país"
Planet Hemp