29.7.09

01/08 - A Hora do Lobo (Ingmar Bergman)

Neste Sábado 01/08 às 19:30hrs
no SESC Cineclube Silenzio
ENTRADA GRATUITA



O pintor Johan e sua esposa grávida, Alma, retiram-se para uma ilha isolada. Johan é consumido por demônios do passado e por constantes alucinações. Alma tenta ajudá-lo a manter a sanidade e controlar sua obra. Mas durante a escuridão entre a noite e o amanhecer, A Hora do Lobo, os medos de Johan podem se concretizar... Tudo funciona à perfeição: a direção magistral de Bergman, a fotografia expressionista de Sven Nykvist e as atuações viscerais de Max von Sydow e Liv Ullmann. Um filme difícil de se esquecer.


Título: A Hora do Lobo, de Ingmar Bergman
Título Original: Vargtimmen
Direção: Ingmar Bergman
Elenco: Max von Sydow, Liv Ullmann, Gertrud Fridh, Georg Rydeberg, Erland Josephson, Naima Wifstrand, Ulf Johansson, Gudrun Brost, Bertil Anderberg, Ingrid Thulin
Ano de Produção: 1968
Duração: 90 minutos
Cor: Preto e Branco
Tipo de Diálogo:
Formato da Tela: Fullscreen 1.33:1
Gênero: Drama
Faixa Etária: 18 anos
País de Produção: Suécia
Legenda: Português
Idioma: Sueco


“Os antigos a chamavam de ‘a hora do lobo’. É a hora em que a maioria das pessoas morre… e a maioria nasce. Nesta hora, os pesadelos nos invadem”.

Exatamente na metade do filme, quando o insone pintor Johan Borg (Max Von Sydow) fala sobre a hora lupina à sua esposa Alma (Liv Ullmann), sob a luz fremente de um único palito de fósforo, Bergman finalmente nos engole para o outro lado do redemoinho sobre o qual apenas circundávamos até então. E o filme todo é como um singrar entorpecido em direção aos núcleos subterrâneos da mente, diluída, aqui, na solvente atmosfera da madrugada.

Começo dizendo que A Hora do Lobo é um dos meus filmes favoritos de sempre, e o melhor do sueco doido em questão. Não apenas pelo salto incontido sobre o surrealismo, mas por manipular como nenhum outro os demônios e pesadelos de um personagem, transformando-o num mergulho inédito (ao menos nunca visto tão intensamente) adentro dos traumas, dos conflitos, dos medos e, essencialmente, da solidão.

Porque mais que pela paz ou pelo bem do seu trabalho, o isolamento naquela ilha traz Johan para um isolamento em si próprio. Daí que é irrelevante a existência ou dos “canibais”, ou da sua mulher ou até dele mesmo quando tudo se afunila (ou se “expande”, que pode ser o termo correto) num verdadeiro universo mental, que embora chamado de “irreal”, talvez seja o nível mais puro e nuclear de todos.

E uma das coisas mais notáveis em A Hora do Lobo é a indefinição de quando, precisamente, começa o alucínio, o vazamento da matéria-prima flutuante dos sonhos para a densa materialização na tela. Isso se de fato começa, ou ainda se está ali desde o início… assim como Bergman não deixa nenhum detalhe que decida derradeiramente que Alma viva apenas na imaginação de Johan, ou que Johan só exista na inconsciência de Alma (cujo nome, aliás – também utilizado na obra-prima Persona – já pressupõe a subdivisão de uma única pessoa em duas, ou se considerarmos os moradores do castelo, várias).

Basicamente tudo se esclareceria se soubéssemos quem, afinal, escreveu aquele diário. Mas acontece que por natureza A Hora do Lobo é um filme de sombras, e Bergman está sempre interessado em perguntas, não em respostas, de modo que a resume grosseiramente a mera pretensão de ‘decifrar’ a obra (e na verdade qualquer outro filme, porque cinema é feito pra se sentir, não para se decompor como a uma equação). Respostas, neste caso, são a mais sólida e impermeável imposição de limites; cercanias num terreno onde a imaginação deve ser livre para se alastrar a galopes.

De todo modo (e se já levemente percorrida até aqui por varizes de trincos), a identidade deste protagonista secreto se estilhaça no momento em que Alma põe os olhos no caderno de Johan (com a ajuda da velha do chapéu, originalmente um dos demônios do seu marido), e é precisamente quando a manipulação do tempo (este deus absoluto) é disparada numa potência até hoje desconhecida e talvez irrepetível na história do cinema (apesar de David Lynch ter feito um trabalho inexplicável em Império dos Sonhos, mas isso é outra coisa). Porque A Hora do Lobo é todo sobre o tempo projetado na lâmina da mente e refratado em uma nuvem de pedaços. Taxá-lo simplesmente de “não-linear”, aliás, é quase um insulto, como pedir para que o próprio Bergman desça e lhe assombre à noite, e quem conhece sabe que o diretor sueco é um fantasma eterno e onipresente sobre quem o assiste (alguns momentos do próprio A Hora do Lobo são especialmente traumáticos).

Mesmo que não esteja saliente como mais tarde, uma delicada névoa de pesadelo já pesa sobre o filme desde o início, mostrando-se mais forte durante a cena do jantar. De cara Bergman entorpece o espectador numa ciranda ao redor da mesa, deformando e diluindo os rostos como se uma pintura ainda fresca de Johan (o que, por um lado, não deixa de ser literalmente verdade) fosse girada sobre o próprio eixo. A partir daí, a imagem quase sempre se solvendo é uma prevenção de que os sentidos e os valores baseados num mundo concreto começam a se desmanchar.

É assim pela cadência célere dos diálogos, dos movimentos de câmera abruptos e dos closes opressivos, resultando num efeito de quase vertigem como que a noite vista detrás dos olhos de Johan (embora a câmera não seja propriamente subjetiva). O que se segue é uma madrugada envolta num manto surrealista todo baseado no comportamento bizarro dos moradores do castelo. O teatro de marionetes inclusive brinca com as noções do espectador de até quando as projeções da mente invadem o terreno do concreto, e neste caso é o próprio Bergman que compõe esta cena assumidamente ficcional, na luz que se apaga sozinha como por ordem do ‘diretor’, na marionete viva, na música de uma banda ou aparelho inexistente (de novo, o próprio Lynch faria algo semelhante – mas bem mais evidente – no clube do silêncio de Cidade dos Sonhos). É ele quem convida a nos soltarmos de quaisquer amarras ao sobrepor o nível ‘cinema’ ao nível do sonho e da imaginação, forjando-os indissociáveis a partir daqui. Ou se crê no cinema como extensão do imaginário, ou se abandona A Hora do Lobo.

Vargtimmen

E o filme é intensamente perpetrado de um feitiço, como que cercado de bruxos, círios e pentagramas. Porque, sob a luz encantada da hora lupina, as coisas mudam de cor, de forma, a densidade das massas toma outros valores, as ligações com o mundo real são corrompidas. Quando “Vargtimmen” se acende na tela, um último resto de sanidade se apaga.

Perdidos na escuridão dessa hora, Alma e Johan conversam e conflitam traumas como se memórias perigosas fossem todas trazidas de volta pondo a mente à beira de uma eclosão. A cena catalítica de A Hora do Lobo envolve exatamente o pior dos fantasmas de Johan: a infância, também angular em toda produção artística do próprio Ingmar Bergman (sabe-se que Bergman sofreu demais nas mãos do pai, um pastor luterano fanático). A confissão do episódio do armário é uma confissão do diretor, e a morte do garoto, uma tentativa de exorcismo (o que já é praticamente um resumo do que guiaria sua filmografia). A cena em questão é das coisas mais perturbadoras e insuportavelmente tensas já filmadas. E é lindo. Pescando num golfo, Johan se vê extremamente incomodado pela presença de uma criança. O garoto se aproxima, observa o quadro e o cavalete com certa curiosidade, conta os peixes fisgados, mexe nas botas, troca olhares indecifráveis com o pintor. Quando ele simplesmente pára nas costas de Johan, o crescente de um zumbido laminal estoura na trilha. O contraste entre a imobilidade dos dois e a aceleração sonora já quase navalhando os ouvidos apenas torna tudo ainda mais incômodo, angustiante, nocivo. E a seqüência da luta é especialmente tóxica para os sentidos. Há toda uma harmonia perfeitamente sincronizada entre a ação e a trilha, que golpeia os ouvidos conforme Bergman agride nossas retinas. Mas o teor realmente assombroso de toda a cena é a visão inexplicável do garoto afundando e emergindo na água igualmente morta e com um aspecto grotesco de óleo diesel (a fotografia do lendário Sven Nykvist joga a maior parte dos tons de cinza no lixo). E o sueco decreta: os porões da memória são sempre os piores cadafalsos. A partir de então Johan submerge-se totalmente, embebe-se no visgo dos próprios traumatismos e afoga-se na saliva dos seus demônios, reencontrados, aliás, um a um pelo seu percurso doentio através do castelo. E é impressionante a precisão de como a lógica torpe de um pesadelo tenha sido representada. As peculiaridades dos seres, a régia toda deformada dos diálogos e o sopro mediúnico do lugar são pilares de uma construção atmosférica sem nenhum paralelo, transformando o terço final de A Hora do Lobo numa das experiências cinematográficas mais intensas e absurdas às quais alguém pode ser submetido.

E a imagem, a partir daqui, toma uma proporção imperativa, mostrando-se inesquecível durante várias situações criadas pelo diretor. A sucessão de ações no limiar do tétrico e do divertido, do repulsivo e do sedutor, do melancólico ao colérico (e Bergman realmente patrola as fronteiras das sensações; aproxima, mistura e dissolve os extremos numa massa homogênea) termina por compor uma tatuagem na pele da memória, e o sentimento evocado ao se olhar para este painel é qualquer coisa à qual ninguém pôde, ainda, nomear.

O que se segue é uma queda livre e irreversível no abismo interior. E no fio do vértice, aparentemente morta sobre uma mesa, nua e linda, iluminada apenas por uma lâmpada incandescente, está uma mulher. O olho do vórtex, o ponto de união do verso e antiverso desta mente que se encontra em pleno desmoronamento. Verônica Vogler é um portal, uma passagem só de ida para outro mundo. E partindo da esquizofrenia do próprio filme, não se sabe ao certo se é a opção definitiva de Johan pelo pesadelo ou finalmente sua fuga dele.

E é lindo, apesar de todo o horror, da violência, de toda tristeza implícita na contemplação quase sádica deste mórbido espetáculo do colapso de uma constelação mental; é lindo pensar que um filme que comece e termine num tom documental tenha sido inteiro concebido no interior de um sonho.


Luis Henrique Boaventura

http://multiplot.wordpress.com/2008/05/19/a-hora-do-lobo-ingmar-bergman-1968/



15.7.09

18/07 - A Dupla Vida de Véronique (Krzysztof Kieslowski)

Neste Sábado dia 18/07 às 19:30hrs
no SESC Cineclube Silenzio
ENTRADA GRATUITA


Véronique vive em Paris, Weronika em Varsóvia. A atriz Irène Jacob (A Fraternidade é Vermelha) interpreta essas duas mulheres que nasceram no mesmo dia e que, de alguma maneira, à distância, sentem a presença uma da outra. Essa estranha conexão interfere em suas vidas e relacionamentos. Ao som da trilha sonora de Zbigniew Preisner, uma das mais belas da história do cinema, Kieslowski constrói um drama de imagens inesquecíveis.
Atores Irène Jacob, Wladyslaw Kowalski, Sandrine Dumas, Guillaume de Tonquedec, Aleksander Bardini, Claude Duneton, Philippe Volter, Halina Gryglaszewska, Jerzy Gudejko, Kalina Jedrusik,
Direção Krzysztof Kieslowski,
Idioma Francês,
Legendas Português,
Ano de produção 1991
País de produção França, Polônia,
Duração 93 min.

"A Dupla Vida de Véronique" é um excelente filme. Realizado pelo consagrado cineasta polonês, Krzysztof Kieslowski, que também co-assina o roteiro, o filme é uma obra intimista sobre o mistério do destino, deixando ao espectador a liberdade de interpretá-lo segundo sua própria sensibilidade.

Além do magnífico trabalho de Kieslowski, Irène Jacob está excepcionalmente cativante em seu duplo papel de Weronika, uma aspirante à soprano polonesa, e Véronique, uma professora francesa de música.

Adicionalmente, "A Dupla Vida de Véronique" conta ainda com a belíssima música de Zbigniew Preisner.

"A Dupla Vida de Verónique" é uma das obras primas do diretor polonês Krzysztof Kieslowski. É uma belíssima fábula, que se passa em um ritmo quase onírico. E é também a obra com a qual Kieslowski abriu seus horizontes para além das fronteiras polonesas. O filme abre com a história de Veronika, uma jovem polonesa com um talento absurdo para a música erudita. Sua voz é incomparável. Após conseguir entrar em uma escola de música, Veronika se apresenta pela primeira vez e morre, com um ataque cardíaco. Veronique é uma jovem francesa com um grande talento musical. Sua vida seguia bem até que ela sente como se estivesse só. Perde o interesse na música e acaba se relacionando um manipulador de fantoches, Alexandre Fabbri, que a conduz para uma espécie de conto da vida real. A história é bastante simples: duas jovens, de mesma idade, que não se conhecem, que moram em países diferentes e que têm o mesmo gosto musical, mas que possuem uma ligação metafísica inexplicável. A simplicidade da trama é trabalhada pela direção magnífica de Kieslowski, que conta essa fábula através de imagens, sons, cores e gestos fabulosos. Nesse aspecto, Kieslowki utiliza de incríveis movimentos de câmera, além da fotografia de Slawomir Idziak, que usa de diversos tons e objetos para trabalhar a imagem. Além disso, a trilha sonora de Zbigniew Preisner é uma das melhores já realizadas, com todo o melhor que a música erudita pode oferecer. Por fim, o roteiro de Kieslowski e Krzysztof Piesiewicz evitam que a história perca vigor no meio do caminho. As atuações são magníficas. Irene Jacob interpreta Veronika/Veronique magistralmente. Seus gestos, sua voz e seu olhar são incríveis. É uma atuação soberba. Com essa performance, Jacob recebeu o prêmio de melhor atriz no Festival de Cannes. Kieslowski recebeu ainda em Cannes o prêmio FIPRESCI e o prêmio do júri ecumênico. A destacar também a atuação de Philippe Volter, que faz o personagem Alexandre Fabbri, que dá novo gás à história. "A Dupla Vida de Verónique" é um filme lindíssimo. É um dos melhores trabalhos do diretor, um sopro de vida, um sonho que transcende os limites de realidade e imaginação. Obrigatório.


Por Antonio Felipe Purcino


3.7.09

04/07 - Tierra (1996) Julio Medem

Neste Sábado dia 04 de Julho às 19:30hrs
No SESC Cineclube Silenzio
ENTRADA GRATUITA

Em algum lugar perdido do universo, num vilarejo de terra vermelha, Angel chega com a missão de livrar as plantações de uva de uma praga que as faz produzir um vinho com um gosto a terra. Em contacto com os habitantes, Angel descobre também uma forma de resolver os seus problemas pessoais. Não se apegue a sinopse simples, Tierra esconde segredos maravilhosos de um dos melhores diretores espanhóis e quem sabe mundiais de nossa época. Do mesmo diretor de "Os Amantes do Círculo Polar".
Direção:
Julio Medem
Ano:
1996
País:
Espanha
Gênero:
Drama, Romance
Duração:
125 min. / cor
Título Original:
Tierra
Elenco:
Silke, Nancho Novo, Carmelo Gómez, Emma Suárez, Karra Elejalde, Txema Blasco, Ane Sánchez, Juan José Suárez, Ricardo Amador, César Vea

Julio Medem

O cinema espanhol sempre me apaixonou, não contando com Almodóvar, incontestavelmente brilhante e o mais mediático de todos, encontramos um leque variadíssimo de grandes cineastas espanhóis como Bigas Luna, Fernando Trueba, Gonzalo Suárez, Manuel Gómez Pereira, entre outros. E se os referidos são geniais, entre a genialidade existe também Julio Medem, cineasta muito particular, cujos filmes relembram um pouco o trabalho de Buñuel. Desta forma resolvi dedicar algumas horas a visitar o universo de Julio Medem, e vi quatro dos seus filmes, "La ardilla roja", "Tierra", "Los amantes del Círculo Polar" e "Lucía y el sexo". E nos quatro filmes encontramos definitivamente um universo peculiar, Medem é mestre em abordar a mente humana, os sonhos, as ilusões e os pensamentos mais recônditos, assim como as coincidências, os desencontros e os acasos do destino, sendo, para além do realizador, o próprio autor das histórias. Também na escolha dos actores Medem tem um universo singular, pois encontramos muitas vezes os mesmos actores, Nancho Novo surge nos três primeiros filmes que referi, sendo o actor principal em "La ardilla roja", Emma Suárez, Carmelo Gómez e Karra Elejalde surgem em "La ardilla roja" e em "Tierra", Txema Blasco em "La ardilla roja" e em "Tierra" e Najwa Nimri surge em "Los amantes del Círculo Polar" (com uma excelente interpretação, no papel feminino principal) e em "Lucía y el sexo". Já para não falar do filme "Vacas", que ainda não tive oportunidade de ver, mas onde entram também no elenco Carmelo Gómez, Emma Suárez, Txema Blasco e Karra Elejalde. A própria música, que tem um importante papel nos filmes de Medem, fica sempre a cargo de Alberto Iglesias, compositor bastante reconhecido, tendo trabalhado em alguns filmes de Almodóvar e tendo sido nomeado ao Oscar de melhor Banda Sonora Original no filme "O fiel jardineiro". A propósito da colaboração de Alberto Iglesias, o crítico de música de cinema Conrado Xalabarder, considera-o um complemento directo de Medem, "tornando mais acessíveis os seus filmes e convertendo-se no melhor porta-voz da introspecção das personagens, expressando o que escondem os seus olhares e os seus silêncios". Em suma, deparamo-nos com um cineasta singular e genial, que não abdica deste universo especial, e extremamente invulgar, que envolve os seus filmes, ao ponto de recusar a oferta de Steven Spielberg para realizar "A máscara de Zorro".

http://luaobscura.blogspot.com/2007/08/julio-medem.html