22.10.09

24/10 - O Alucinado (Luis Buñuel)

Neste Sábado 24/10 às 19:30hrs
no SESC Cineclube Silenzio
ENTRADA GRATUITA


Francisco mantém uma imagem de homem tranqüilo, conservador e religioso. Durante uma missa, conhece Glória, noiva de um amigo. Em pouco tempo, consegue separá-los e casar-se com a jovem. Depois do casamento, passa a ser um homem paranóico, ciumento e atormentado. Fascinante drama psicológico marcado por crítica feroz à burguesia e ao clericalismo, O Alucinado é considerado pela crítica mundial como uma das obras máximas do mestre Luis Buñuel. Inclusive, o próprio cineasta costumava afirmar que este era um dos seus trabalhos favoritos.
Gênero Arte
Atores Arturo de Cordova, Delia Garces, Luis Beristain, Manuel Donde, Aurora Walker, Carlos M. Baena, Fernando Casanova, Rafael Banquells, Roberto Meyer,
Direção Luis Buñuel,
Idioma Espanhol,
Legendas Português,
Ano de produção 1952
País de produção México,
Duração 90 min.

O ALUCINADO (El/1953)

É junto com "If"... (1968), de Lindsay Anderson, o título de filme mais diminuto da história do cinema, o mesmo, aliás, do livro da escritora espanhola Mercedes Pinto, do qual o filme é adaptado. E o mais bizarro. Como se sabe, "El" corresponde ao nosso "O". "O" o quê? No caso, refere-se ao personagem Francisco Galvan (Arturo de Córdova), e o fato de não haver nenhuma palavra que complete o artigo, como no título em português, oferece ao espectador a oportunidade de situar Francisco em algumas características próprias de um homem mental e psiquicamente enfermo. Não é apenas a questão do ciúme doentio. Na verdade, à medida em que a história se desenvolve, ele vai se desvendando ao espectador como um paranóico, um fetichista, e com uma frequente oscilação de humor no relacionamento com a esposa Gloria (a bonita e fina Delia Garcés), que num piscar de olho pode passar do afeto para a agressividade até física. Além disso, Francisco é vítima de uma idéia fixa, a de recuperar antigos terrenos da família desapropriados.
"O Alucinado" começa numa igreja. É a época da Semana Santa e está sendo realizada a cerimônia de lava-pés. Francisco está entre os homens que auxiliam o padre, colocando a água na bacia. A câmera flagra o olhar atento de Francisco para os pés que são lavados e, em seguida, desloca o seu olhar para os sapatos de Gloria, primeiramente juntos com os de outras mulheres e depois se detendo nos dela.
É bem de Buñuel que a paixão de Francisco por Gloria se inicie numa igreja e que ele seja um homem religioso. O seu anticlericalismo leva-o a criticar a outra face daqueles homens que têm a religião como uma fachada para merecerem o respeito e a admiração das pessoas, sobretudo as do clero. O padre jamais irá acreditar em Gloria quando ela vai lhe relatar a conduta cruel, perversa e violenta do marido. Nem a própria mãe dá credito às suas queixas. Somente Raul (Luís Beristáin), o ex-noivo, acredita nela. Aliás, o reencontro dos dois, a partir do qual, por meio de um flashback, Gloria conta o seu relacionameno com Francisco, me parece algo artificial, inclusive com um toque de melodrama (ela é quase atropelada pelo carro que ele dirige), um escorrego do roteiro escrito por Buñuel, em parceria com Luís Alcoriza.
É na mesma igreja que o estado psíquico e mental do personagem atinge o grau máximo. Em um casal que avista entrando na igreja ele acredita que são Gloria e Raul e vai atrás deles. Vendo que se enganara, deixa-se ficar num banco e, a partir de um dado momento, começar a "ouvir" e a "ver" dos fiéis risadas e gestos zombeteiros. Quando "percebe" que o velho padre, tão seu amigo, participa também da assuada, não se contém e parte para agredir o sacerdote. É quando este conclui que o seu amigo está muito enfermo.
"O Alucinado" é um filme na medida para os que se dedicam à psiquiatria e à psicanálise. Jacques Lacan, por exemplo, tinha um grande apreço por ele, conforme o demonstrou numa longa conversa com Buñuel. Lacan, inclusive, participou de uma sessão do filme, cujos espectadores eram todos seus colegas. É o que o diretor revela no seu livro "O Meu Último Suspiro".
Não podemos saber até que ponto a construção do personagem pertence à autora do romance e a parte que cabe a Buñuel, já que não conhecemos o livro. Mas pelo que conhecemos da filmografia do espanhol, que passou grande parte da sua vida no México e lá faleceu, ele certamente acrescentou ingredientes à composição desse doente Francisco Galvan. E a sua marca autoral é percebível, sobretudo, no propósito de, através do personagem, incomodar, perturbar, causar impacto no espectador, o que ele fez desde o seu primeiro filme, "Um Cão Andaluz", em 1928. Se isso é uma das funções da arte, Buñuel é um dos seus mais expoentes arautos.
Pode-se dizer, sem medo de errar, que a presença forte da religião no filme, que começa e termina num local religioso (no caso do final, num mosteiro, onde Francisco foi parar, depois de se tratar numa clínica), é da responsabilidade dele. E a cena que encerra "O Alucinado", com Francisco vestido de monge, com o capuz cobrindo a cabeça, caminhando em ziguezague, é buñueliana por excelência.
Escrito por Francisco Sobreira http://luzesdacidade.blogspot.com

8.10.09

10/10 - Nostalghia (Andrei Tarkovsky)

Neste Sábado dia 10/10 às 19:30hrs

no SESC Cineclube Silenzio

ENTRADA GRATUITA





Nostalgia - 1983 - (Nostalghia)

Colorido - 121 min. - Fullscreen Letterbox (4:3)


Gortchakov é um poeta russo que viaja pela Italia acompanhado pela bela Eugenia, sua guia e tradutora. Sua missão é pesquisar sobre a vida de um compositor russo do século XVIII. em uma antiga cidade, eles encontram o lunático Domenico que anos atrás, aprisionou sua própria família em um celeiro para protegê-los dos perigos do mundo. Na medida em que Eugenia seduz Gortchakov, percebendo alguma verdade no ato de Domenico, ele se sente atraído pelo lunático. Através de uma série de sonhos, o poeta recorda sua terra natal e sente saudade de sua esposa, seus sentimentos ambivalentes por Eugenia e sua Italia, e sua afinidade com Domenico se entrelaçam ainda mais. Primeiro filme feito fora da Rússia do cineasta e poeta Andrei Tarkovski. Vencedor de 2 prêmios em Cannes.


Marcante... uma experiência que você jamais esquecerá.

Chicago Tribune.



A cena de Nostalghia (1983) em que o poeta russo exilado Andrei, segurando uma vela, atravessa a piscina vazia de uma estação termal na Itália, cuidadosamente evitando que ela se apague, tem clara ligação com o ato final do protagonista de O Sacrifício.
Em ambos, o sentimento agudo da insuficiência espiritual do mundo moderno leva a um ato de entrega a uma dimensão que, para o racionalismo, nada pode ser senão loucura ou irracionalidade.
A piscina vazia, sem água, sem o elemento envolvente, remete simbolicamente a um mundo também vazio e sem capacidade de acolhimento e proteção. Na água, somos envolvidos, acolhidos. E como diz o "louco" Domenico, duas gotas d'água fazem uma só. As quantidades se tornam unidade.
Na casa de Domenico, cujo teto esburacado permite que a água da chuva a penetre livremente, o belo enquadramento de Tarkovsky permite observar na parede um grande pano estendido onde se lê: 1+1 = 1. Mais uma vez o motivo da quantidade que se faz unidade. Perece querer dizer-nos que a quantificação, que define o mundo moderno, não pode ser universal e nem dar conta de todas as dimensões do espírito humano. Domenico proclama dimensão humana de busca pela unidade e pelo Absoluto.
A água remete também ao elemento de origem, a fonte de onde saímos e da qual temos nostalgia. A piscina vazia é como um útero vazio, estéril, sem fertilidade. Não é à toa que as mulheres piedosas do início do filme pedem à Santa Maria que conceda à uma jovem o filho que ela tanto anseia. É ao espiritual, ao supra-racional, que nosso mundo moderno deve se voltar a fim de que haja futuro.
A piscina vazia significa também um exílio ontológico. Ela é a imagem do percurso terreno que, por sua natureza, se dá na ausência do contato direto com Deus. Só se pode atravessar esse exílio com uma vela acesa nas mãos. Com uma luz sempre prestes a apagar e que, de fato, diversas vezes se apaga durante o caminho. A vela é o símbolo da dimensão sobrenatural da fé sempre ameaçada de esquecimento. Levar essa vela, cuidar dela, no entanto, é condição para atravessar o caminho e, como afirmava o "louco" Domenico, salvar o mundo.
Andrei assume essa responsabilidade e atravessa o caminho daquela piscina vazia e morre segundos após completar sua missão. Na cena final, ele reaparece, sentado na grama em frente à casa da qual sentia uma nostalgia terrena e, acima e aos lados, colunas de uma antiga igreja, símbolo do absoluto do qual sentia uma nostalgia espiritual.
A cena em si é uma representação do lugar do homem e de sua realização plena. O temporal imerso no eterno, e o terreno envolto pelo celeste. Uma alegoria da imagem cristã do destino humano último, a ressurreição, onde o espiritual e o corporal estarão unidos de forma perfeita?
Decerto uma expressão do anseio humano mais íntimo, o anseio de plenitude. Vale lembrar aqui a resposta de Deus à Santa Catarina de Sena, citada pelo "louco" Domenico: " tu és aquela que não é e Eu Sou aquele que é."




Nostalgia como o desejo do retorno – de um vazio incondicional, de uma essência que estaria ecoada enquanto ruptura com o presente. Religião, religar-se: um certo sentimento de abismo que parece tender sempre a um inalcançável. Nostalgia como a loucura, essa memória do novo, a "voz que não escutamos". Tarkovski traça um filme nos limites do humano, como anjos caídos a ouvir (ao longe) as palavras de um Deus nunca-presente, por entre pilastras frias e atravessadas pela presença de um Ser indefinível. O poeta russo carrega a memória de seu passado, o louco Domenico carrega o desejo de a um só tempo poder esquecer-se de tudo e relembrar-se do Todo. Nostalgia aparece como esse sentido inescapável de eternidade, de que há algo de sempre pequeno e de sempre inexprimível em cada gesto que ultrapassa as diferenças sociais, culturais, políticas, econômicas... humanas.

O mundo nos aparece como uma espécie de caverna, de masmorra cheia de belezas ímpares, mas úmida e enevoada como as piscinas de água quente. As vozes (e Tarkovski passeia com a câmera encontrando vazios e nucas), parecem vir de algum lugar-outro que não das bocas de seus personagens, de suas figuras, de seus vultos. O som pregnante de goteiras, de serras elétricas, de cantos ecoados pelos corredores do hotel/casa-de-banho onde se hospeda o professor: tudo remete ao cenário inicial do templo de Nossa Senhora do Parto, onde mulheres caminham em círculos, murmurando nas sombras. Os raccords falsos, a câmera que descobre paredes em travellings sem rumo, os personagens que surgem de baixo do quadro como que se erguendo do chão, as paredes enrugadas (e, nesse sentido, a cenografia do filme é primorosa).

Há uma fantasmagoria que percorre a narrativa, onde os corpos circulam, passeiam, em movimentos marcados, duros, como as representações inertes de figuras-imagens que estão não-mais-ali (como as estátuas de que fala Domenico). É o gesto da pesquisa, da arqueologia (a busca pelo passado) que vai desencadear, nesse labirinto, a possibilidade de alguma ruptura, de algum sentimento de recomeço intuído, mas nunca enxergado. É a partir do encontro do taciturno professor (em sua busca pelas memórias de um compositor russo obscuro) com o misterioso Domenico (funcionário da casa-de-banhos) que o filme se conjuga em direção a uma trágica e incontornável alegria. Incontornável como a promessa de atravessar a piscina levando nas mãos a pequena vela acesa...Como se todo o filme, todo o perambular da câmera parecesse nos levar, hipnotizar (em um mantra) em direção às duas seqüências finais: a da morte-suicídio de Domenico em meio à cidade de Roma (a imagem-clichê da cultura ocidental) e a do atravessar da piscina com a vela nas mãos. A articulação entre essas duas seqüências funciona como o desaguar de todos os minutos anteriores do filme.

Primeiro, o momento trágico em que Domenico põe fogo no próprio corpo (diante de uma multidão de estátuas, de mármore e de carne) e ouvimos a Ode à Alegria de Beethoven (numa trilha sonora diegética/não-diegética em que não vemos a fonte da música, embora percebamos que ela está sendo reproduzida "dentro do filme", por um aparelho precário), seguida do grito seco do homem que sente seu corpo tomado pelas chamas. Em seguida, segundo momento, vemos as mãos do professor tentando acender o pequeno pavio de um pedaço de vela. Diante de uma piscina de águas termais, agora vazia, tem início uma das cenas mais antológicas de toda a filmografia de Tarkovski: num único plano-seqüência, acompanhamos o professor levar (entre as palmas das mãos) a chama frágil da vela, indo de um lado ao outro da piscina. Apesar de todo cuidado e concentração do professor, a umidade do ambiente é muito grande e a vela insiste em se apagar. Mas o professor continua sua tentativa, reacendendo a vela, e repetindo o trajeto desde o início. A mesma força destrutiva do fogo agora aparece naquela pequena e frágil chama, tão suscetível a se apagar a qualquer momento, a qualquer movimento brusco. É a insistência, a resistência – um sentido primordial de promessa e da vontade – que fazem com que o professor perpetue sua tentativa... até conseguir.

Esse pequeno ritual, simples, aparece no filme como a imagem-limite, como o gesto de reencontro final do personagem com toda a densidade e o peso de suas lembranças (e daquilo que, em seu corpo, se torna inexprimível). A umidade do ambiente, a batalha entre o fogo e a água (que cria o vapor denso das piscinas termais e que o impede de enxergar mais adiante). Em off, o professor só consegue grunhir, como se tivesse se ultrapassado, enquanto vemos a vela já posta do outro lado da piscina. Final do percurso, do ritual, do calvário – restam as reticências de uma imagem preto-e-branco onde o professor finalmente se deita "por dentro" de seu passado, ao lado de um velho cão, e fita o céu distante agora refletido no chão, numa poça d`água. Tarkovski finda assim essa pequena obra-prima de cinema-posado e de poesia gráfica; apostando em imagens que são antes de tudo sintomas pulsantes, tensões da forma e dos sons, numa vivacidade que se não está localizada em cada um de seus personagens-estátuas, parece percorrer o filme como uma espécie de energia não-localizável, intuída, tão frágil, tão poderosa e tão passageira quanto a chama que queima (que tanto pode atravessar os corpos quanto desaparecer em um leve bufar de vento) e que alguns chamariam de "fé". Não uma "fé" resumida neste ou naquele estatuto, mas uma "fé" primordial, talvez, na própria sobrevida do cinema para além de tudo o que se possa alcançar, que se possa conter nas imagens. Nostalgia, mais do que um retorno ao passado, é esse desejo, sem-solo, de se tocar, de se contagiar (e contagiar o espectador) com um sentido indecifrável de eternidade. E esse é o grande êxito do filme, e de Tarkovski.


Felipe Bragança