20.5.07

Não Matarás (Krzysztof Kieslowski)

Dia 26 de Maio de 2007 - 19:30hrs No SESC Cascavel - Entrada Grátis.
O mecanismo do acaso e coincidência, genialmente trabalhado por Faulkner na literatura, teve em Kieslowski o seu representante cinematográfico mais ilustre. Na primeira meia hora de Não Matarás, assistimos a três histórias paralelas de três personagens nas ruas de Varsóvia: um jovem advogado que faz um exame numa espécie de correspondente à OAB polonesa, um taxista vitriólico com cães e gatos, e um rapaz que perambula alheatoriamente pela cidade; ao cabo de escassos minutos já intuímos que estes destinos irão cruzar-se de uma maneira ou de outra. Versão expandida de um dos episódios da sua monumental série Decálogo, que analisava cada um dos mandamentos da Bíblia, este filme do realizador polones é um triunfante thriller existencialista, abarcando as tensões de um Hitchcock e a metafísica de Dostoiveski à lá Crime e Castigo; o crime cometido, esse mesmo, é filmado exemplarmente, com níveis de dilatação do tempo e crueldade que Alfred não desdenharia fazer, caso o deixassem. Kieslowski apresenta a capital através de uma fotografia "dura", sem bonitinhos, o mood certo para a tragédia subterrânea da estória, que após a sua peça central (o crime) dá lugar a um imediato castigo, numa gigantesca elipse de enorme economia narrativa. A última meia hora, ritual de portas de prisão batendo e preparativos para o enforcamento, é um mostruário da eficiência de Estado, gestos tecnocratas pouco preocupados com questões sentimentais. A música do famoso Zbigniew Presiner, ora melancólica ora tensa, transmite mais nuances emocionais a este conto; os diálogos finais entre o jovem advogado e o autor do crime valem pelo seu intimismo doloroso e confessional.



Resumo: Jack é um jovem desempregado obcecado pela violência. Certo dia, sem motivo aparente, ele sai pelas ruas de Varsóvia e resolve matar um motorista de táxi, proporcionando uma das cenas mais cruas, reais e violentas. Um advogado criminalista tenta livrar Jack da pena de morte, e pelo caminho ele esbarra com um Estado totalitário e uma sociedade ainda mais cruel que seu próprio cliente.





Título: NÃO MATARÁS (Krotki film o zabijaniu)
Direção:
Krzysztof Kieslowski
Elenco:
Miroslaw Baka, Jack K. Globisz
Origem:
Polônia Data:
1988
Duração:

85 minutos




Fonte: Mil e um Filmes e Conselho Federal de Psicologia / Serviço de Biblioteca e Documentação do Instituto de Psicologia - USP

2 comentários:

Anônimo disse...

Kieslowski leva ao cúmulo a proposta de não ser maniqueísta.
Ninguém é suficientemente mau para ser morto, nem bom para estar vivo.

É difícil para mim falar de qualquer Kieslowski sem cair em frases melosas, pois ele foi uma das minhas portas de entrada para o universo cinematográfico. Quando assisti 'Não Matarás' pela primeira vez, (antes de coisas como "Irreversível", e diretores como Takashi Miike) para mim, ele continha uma das cenas mais violentas já vistas no cinema, e realmente me chocou, e justamente pelo choque me fez mergulhar de cabeça no filme e me sentir nauseado por talvez numa das minhas primeiras experiências dentro do cinema, neste sentido, eu não saber o que fazer, não saber o que pensar, e depois da exibição, sair pensando sobre aquilo, uma semana ou mais.

Kieslowski é metódico; cirúrgico; seja para uma cena impactante ou num simples torrão de açucar sendo consumido pelo café quente.

Devo confessar que senti muito sua morte em 1996, mas em seu tempo ele com toda a certeza, disse a que veio.

Tanto em seus primeiros filmes, quanto na 'Trilogia das Cores' e no monumental 'Decálogo' (do qual 'Não Matarás' foi extraído e transformado num longa) ele mostrava com uma visão até então única, a solidão, a ausência (seja de alguém, seja de alguma coisa, seja de Deus) e um universo de pessoas que vagam sós sem nem perceber a maneira como essa solidão as liga com seus demais.

Um viva para Kieslowski.
Não há como uma obra tão complexa, morrer.

Anônimo disse...

O filme "Não Matarás" permite diversas leituras, partindo tanto da estrutura social quanto do comportamento das personagens, relacionadas por sua vez, aos preceitos de diversas ordens institucionais que Kieslowski coloca em conflito com uma sutileza perversa.

As três personagens que interpelam-se no decorrer do filme, partindo de suas peculiaridades, transformam a estrutura social num aglomerado de valores burlados, ou seja, quando da consciência desenvolvida por aquelas com relação a estas, desenvolvem-se como um argumento ou fundamento do comportamento contrário, sem culpa ou punição. No caso do taxista e de Jasek, que são colocados tipicamente como seres "anômicos" ou causadores de patologias sociais (na linguagem do sociólogo Émile Durkheim) podemos partir, sociológicamente, dos preceitos morais da estrutura social que agem sobre estas personagens de forma que as mesmas relacionem-se de forma alheia ao universo ao qual estão contidos.

Por exemplo, o cuidado excessivo com o carro, no caso do taxista, indo de encontro ao seu prazer em "maltratar" cachorros e o fetiche de Jasek com a violência e ao mesmo tempo seu saudosismo reflexionado com relação á irmã morta, mostram que o indivíduo, mesmo que preso e/ou condicionado à uma estrutura que molda seu comportamento, é livre para relacionar-se com o mundo de uma maneira própria determinada por sua vez, pelas construções de sentido que cada sujeito empreende.

Pensando por esta linha durkheiminiana, podemos dizer que estes dois personagens "desviantes", apesar de ligados fortemente à estrutura que renegam (no caso de Jasek por exemplo, é o apego fortíssimo à família) opoem-se de forma determinante à personagem do advogado que é o responsável (na realidade do filme) pela manutenção da ordem. Talvez seja por este motivo então, desta preocupação com a consevação das estruturas, que o prazer com o desenvolvimento da sua profissão e a culpa pela pena imputada a Jasek colocam-se (no mesmo sentido dos conflitos presentes na existência dos demais personagens) de maneira algoz, trazendo à tona novamente, o conflito constante entre os preceitos morais da estrutura e as vivências reais dos sujeitos, que precisam ser de certa forma, quase que "esquizofrênicos" para exercer seus papéis sociais em todas as instâncias cujas quais são pertencentes ou participantes.

Bom, a partir deste raciocínio, levando em conta agora apenas a função individual de cada personagem, coloco ainda que apesar da questão religiosa dos dez mandamentos terem sido contemporaneizadas por Kieslowski de forma "laica", a função homem x eternidade aparece num sentido interessante, quando pensamos, por exemplo, a respeito de Jasek que foi punido independentemente de seu arrependimento. Ora, com relação aos preceitos "divinos", aquele que peca e arrepende-se pode ainda pertencer ao reino dos céus, diferentemente - do que acredito eu, é explorado pelo autor neste momento - das leis terrenas e da legitimidade da aplicação da pena de morte, que neste caso deixa de ser um pecado e que independe da índole do indivíduo punido.

Talvez ainda neste sentido, o relacionamento destas três personagens que com seus conflitos e existências, em determinados pontos, descomprometidas das estruturas gerais da sociedade, apresenta-se como um relacionamento entre ilhas de sentido que determinam-se de forma autônoma enquanto ações, entretanto, presas incondicionalmente à estrutura que rege e determina o funcionamento geral da ordem através da limitação destas ações - seja pelos preceitos da profissão, pela ação de um ser exterior consciente ou não de intenção, seja ainda pela punição legítima.

Penso então que este possa ser o significado do distanciamento da direção de Kieslowski, que coloca sempre estas personagens em planos que nos distanciam (enquanto público) das mesmas, seja por obstáculos (como copos de chá, enfeite do carro, etc.) seja por corredores extensos, mostrando de forma sutil a presença das mesmas num universo que as contém e as comprime e ao mesmo tempo as distancia e isola.

"Qualquer indivíduo é mais importante do que a Via Láctea."
Nelson Rodrigues