22.4.09

25/04 - Faces (John Cassavetes)

Neste Sábado dia 25/04 às 19:30hrs
No SESC Cineclube Silenzio
ENTRADA GRATUITA

Cinema do corpo, espelho da alma

A entrada em Faces é uma experiência abismal: depois de uma seqüência inicial um tanto metalingüística e quase deslocada (mas nem tanto) da narrativa subseqüente, somos jogados no meio de uma seqüência noturna em que dois homens e uma mulher saem do “The Loser’s Club” (que nome, que nome!!...), e vão para a casa dela. Lá, embriagados, se envolvem numa longuíssima seqüência de sedução e repulsa, onde muito aos poucos vamos entendendo os laços que unem (ou não) cada um deles. A seqüência é longa, mas os planos são curtíssimos, instáveis ao extremo: cortes rápidos, quebras constantes (e propositais) de eixo, aproximações extremas nos rostos misturadas com planos abertos, pequenas elipses. Uma leitura apressada falaria de uma “câmera bêbada” como os personagens, mas muito mais do que uma questão de embriaguez, a inquietude da câmera de Cassavetes é reflexo do desconforto dos personagens (a princípio um desconforto lido pela situação em si, mas que, ao longo do filme, veremos se tratar de um desconforto muito mais profundo, existencial mesmo).

Esta primeira seqüência, agressiva e confusa (ambos efeitos absolutamente propositais), estabelece um desafio ao espectador: “ame-me ou deixe-me”. O filme ali deixa claro para o espectador que não pretende facilitar sua fruição, nem no que tange a linguagem, nem especialmente no que tange o retrato das relações humanas. Trata-se, neste sentido, de ato até generoso: Cassavetes estabelece bem cedo suas regras, e permite ao espectador que tome por si a decisão de comprá-lo ou não. Aos que optarem por comprar, Faces oferece uma viagem às profundezas do ser humano, principalmente a partir das relações de gênero, amorosas e sexuais – e neste sentido o filme não poderia ser mais representativo do seu ano de produção (1968), antecipando muito do debate sobre os papéis da mulher que dominaria os EUA na década seguinte.

Nesta viagem, Cassavetes demonstra uma disposição cada vez mais rara no cinema que o sucedeu (em especial, o dito cinema independente americano, do qual foi eleito postumamente como o “papa e fundador”, mas que tão pouco deve a ele no geral): tornar ternura e agressividade, fragilidade e poder, desesperança e transcendência pólos não apenas próximos, como convivendo sempre nos mesmos corpos. Corpos, sim: porque embora o filme se chame Faces e realmente tenha alguns dos mais marcantes closes em rostos humanos vistos no cinema (especialmente os de Richard Morley e Lynn Carlin – estupendos – mas no de todos os atores), todo o jogo do filme é uma questão de corpos em movimento. Talvez fosse mais adequado falarmos mesmo corpos (nada celestes) em órbita, porque cada um deles parece gerar um campo gravitacional em torno de si, constantemente atraindo e repelindo os outros. Não por acaso os primeiros beijos entre Morley e Gena Rowlands mais parecem uma colisão entre dois objetos animados do que exatamente um encontro “amoroso” entre dois seres humanos. Trata-se menos da expressão de um desejo do que a simples concretização de uma força maior que ambos, que os empurra em direção ao outro. O mesmo acontecerá mais adiante nas cenas entre Seymour Cassell e Carlin, no apartamento desta – tanto na sedução como na impressionante seqüência da reanimação dela, em que poucas vezes vimos o peso de um corpo filmado com tanta força.

Tudo isso vai culminar na seqüência, e especialmente no plano final, em que os corpos de Morley e Carlin parecem mesmo atrair e repelir um ao outro seguidamente, como se eles mesmos não dominassem mais seus atos, seus impulsos, seu desejo do carinho, do entendimento, mas também da fuga, da liberdade, da recusa. Este plano final, inclusive, serve como antítese a todas as idéias mais simplórias do cinema de Cassavetes como um do domínio do improviso: um plano longo, de enquadramento fixo e estudadíssimo para atingir o máximo efeito das entradas e saídas de quadro, da relação de profundidade e mudança de altura através da escada. Plano para o qual todo o filme converge, mostrando que o cinema de Cassavetes é um do planejamento, ainda que um planejamento que incorpora a matéria-viva do cinema (ou seja, os atores – mas também a câmera) como partes criadoras de um sentido já muito pensado.

É aí que o cinema de Cassavetes se aproxima do de um Rohmer, que assim como ele (embora em registro visual e dramático absolutamente distinto, pelo menos após O Signo do Leão) se aproveitava de um determinado “efeito de real”, só que atingido a duras penas (através de uma exploração altamente estudada de progressão dramática e linguagem muitas vezes teatral – este último aspecto muito mais em Cassavetes, é verdade, especialmente notável, não só pelo tema, em Noite de Estréia). Só que este efeito de real, muito mais do que “fotocopiar” a vida, busca transcendê-la pela sua hiper-utilização, pela sua exacerbação, nos permitindo o sentimento essencialmente artístico do êxtase da percepção. Ou seja: tudo aquilo que um determinado cinema “sanguessuga do mundo real” (pensamos hoje especialmente em Na Cama, cuja trama inclusive possui paralelos com a de Faces) não consegue sequer compreender, que dirá solucionar cinematograficamente. Em Faces, muito mais do que apenas (apenas?) uma compreensão profunda dos dilemas humanos frente a incompletude e beleza inerentes aos encontros e relações amorosas, temos ao trabalho um mestre da arte cinematográfica no ápice do seu domínio da linguagem que resolveu explorar. Não é pouca coisa.

por Eduardo Valente.

Direção:

John Cassavetes

Ano:

1968

País:

Estados Unidos

Gênero:

Drama

Duração:

130 min. / p&b

Título Original:

Faces

Elenco:

John Marley, Gena Rowlands, Lynn Carlin, Seymour Cassel, Fred Draper, Dorothy Gulliver, Jerry Howard, Carolyn Fleming, Don Kraatz, Val Avery

Sinopse:

O enredo do filme reflete as insatisfações da classe média americana e a falência da instituição familiar a partir de uma trama de troca de casais.