18.11.09

21/11 - Meu Tio (Jacques Tati) ÚLTIMA SESSÃO DO ANO

Neste Sábado dia 21/11 às 19:30hrs
No SESC Cineclube Silenzio
ENTRADA GRATUITA





Meu Tio (Mon Oncle)

O humor explode quando o excêntrico herói Monsieur Hulot de Jacques Tati deixa a ultra moderna casa de seu cunhado e vai para uma anti-séptica fábrica de tubos de plásticos. Tati dirige e estrela a segunda aparição do personagem Hulot. Uma deliciosa sátira da vida mecanizada. "Meu Tio" marca a segunda aparição do personagem Monsieur Hulot, anteriormente apresentado em "As Férias de Monsieur Hulot"(1953). Tati, com seu humor terno e grande poder de observação, criou esta deliciosa sátira a modernidade e ao consumo desenfreado. Com vários momentos inesquecíveis (a casa onde tudo é desconfortavelmente arrumado, limpo e mecanizado; todas com o sobrinho; as de Hulot na fábrica e andando pelos vários andares e compartimentos do seu apartamento, etc), Tati, com toda sua mestria, criou uma obra que é puro encantamento !


Atores Jacques Tati, Jean Pierre Zola, Adrienne Servantie, Lucien Fregis, Betty Schneider,
Direção Jacques Tati,
Idioma Francês,
Legendas Português,
Ano de produção 1956
País de produção Franca,
Duração 116 min.


* Oscar® (1958):
Vencedor de melhor filme estrangeiro.

* Cannes (1958):
Prêmio especial do juri.

* Associação dos Críticos de Nova York:
Vencedor de melhor filme estrangeiro.



Enquanto mostra sua casa, comenta a viciada em limpeza Madame Arpel com sua vizinha “E essa é minha sala de estar”, que prontamente responde “Ela é um pouco vazia, não?”. Surpresa, a anfitriã retruca: “Mas é moderno!”. A óbvia relação entre vazio e moderno é atual, mas Jacques Tati havia nos avisado disso lá em 1958, ao lançar Meu Tio, seu filme francês de menor sucesso comercial à época, mas o mais reconhecido (tardiamente), tendo, inclusive, conquistado o Oscar de Melhor Filme Estrangeiro na premiação do ano seguinte.

Aparentemente simples e direto, conta a história de uma família totalmente dependente da tecnologia fútil, tudo automatizado e superficial; e até hoje penso se o fato do chefe da família e da madame Arpel serem gordinhos foi mera coincidência ou se Tati já estava criticando o ócio da sociedade perante a automatização. O fato é que o filho do casal, Gerard, vê aquilo tudo com tédio e desgosto, tanto que é muito mais próximo de seu atrapalhado tio Hulot, interpretado pelo próprio Tati, um sujeito gente boa, mas bem desligado das coisas que está fazendo, acabando sempre caindo em confusões por isso.

Ao passo em que vamos acompanhando as críticas feitas por Tati, percebemos que todas elas podem ser vistas atualmente. Pense, por exemplo, na empregada com medo de passar nas luzes e ser eletrocutada; nos dias de hoje, ela teria medo de pegar câncer. Mas não há como não se impressionar com a fluidez e simplicidade que a história é contada pelo roteiro: tudo vai acontecendo devagar, sem explicações redundantes, ou você capta o que ta assistindo ou se perde em meio aos diversos efeitos sonoros que o filme apresenta para brincar com nossos raciocínios.

Só que essa simplicidade é superficial, pois o longa é lotado de pequenos detalhes que o enriquecem de maneira fantástica: o muro que divide a cidade moderna vazia da “realidade” na periferia em que vivem a maioria dos personagens, incluindo o simpático Sr. Hulot, pode ser percebido também como divisor desse contraste óbvio entre dois mundos completamente distintos (algo acentuado ainda mais nos dias de hoje, a desigualdade social).

E dito isso, volto a falar do pequeno Gerard: do lado “moderno” da cidade, onde ele pode brincar com seus trens e bolas, o menino está sempre fechado e só ri quando seu tio, vindo do "outro lado", começa a aprontar suas trapalhadas. Porém, quando o garoto está neste lado mais humilde, fica com os outros jovens, aposta moedas para fazer travessuras, come sonhos gigantes feitos por um doceiro de mão suja, enfim, diverte-se da forma mais ingênua e sincera que uma criança é.

Aproveitando a deixa da diversão, gostaria de comentar o ponto crucial para o filme funcionar: as piadas. Apesar das críticas e conteúdo, Tati não fez um filme chato ou pesado. Baseado no choque de características de seus personagens, diversas cenas hilárias são criadas, fazendo desde crianças até adultos rirem com tiradas inteligentes e ingênuas no melhor estilo “Chaves” de ser. Sr. Hulot é um personagem que não fala, seus atos são todos “Chaplinianos”, reforçados por uma genial marcação de efeitos sonoros que brinca a todo momento com o contraste entre imagem e som. A seqüência em que Charles Arpel estaciona seu carro, enquanto o velhinho levanta o braço para evitar uma colisão e, ao mesmo tempo, interrompe o som é genial. Como dito anteriormente, esses efeitos são importantíssimos para a compreensão do que está acontecendo e para a construção geral do longa.

Não lembro onde li algo sobre músicas que pode ser repetido para os filmes: “aquela que você ouve e gosta instantaneamente, ouvirá um mês e irá enjoar dela; agora aquela que você vê e não sabe se gostou ou não é a que ficará marcada para sempre”. É bem essa a sensação de ver Meu Tio hoje, depois de tantos anos e tantos filmes lançados e perceber, curiosamente, que apesar de falar de tecnologia é mais atual que muitos trabalhos lançados hoje. É o tipo de filme que vamos assistir mais de uma dezena de vezes e gostar de todas elas, cada vez mais.


Por Rodrigo Cunha

7.11.09

9 a 14 de Novembro - MOSTRA DE CINEMA FRANCÊS CONTEMPORÂNEO

Mostra de Cinema Francês Contemporâneo.


Em comemoração ao Ano da França no Brasil, o SESC juntamente com a République Française e o MinC, tem o orgulho de apresentar a Mostra de Cinema Francês Contemporâneo sob curadoria de uma das mais importantes publicações cinematográficas do mundo, a CAHIERS DU CINÉMA, para a qual já escreveram nomes como André Bazin, Jean-Luc Godard e François Truffaut.

CLASSIFICAÇÃO: 16 Anos


PROGRAMAÇÃO


Dia 09/11 (segunda-feira)– 19:30hrs ABERTURA – COQUETEL e DEBATE


TUDO PERDOADO

Tout est pardonné (França 2007). De Mia Hansen-Løve. Com Paul Blain, Constance Rousseau, Marie-Christine Friedrich, Carole Franck, Olivia Ross, Victoire Rousseau. Drama em cores. Duração 105’.

Victor vive em Viena com Annete, sua esposa, e sua filha Pamela. É primavera. Fugindo do trabalho, Victor passa os dias fora, brinca com a filha e vadia no parque. Apaixonada, Annete está confiante que ele tomará jeito. Mas Victor não abandona os maus hábitos e acaba se apaixonando por uma jovem junkie. Onze anos depois, Pamela descobre que o pai vive na mesma cidade e decide vê-lo novamente.


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Dia 10/11 (terça-feira) – 20hrs A ESQUIVA

L’Esquive (França, 2003). De Abdellatif Kechiche. Com Osman Elkharraz, Sara Forestier, Sabrina Ouazan. Drama romântico em cores. Duração 117’.

Em um conjunto habitacional no subúrbio parisiense, um anjo passa declamando apaixonadamente versos da peça Le jeu de l’amour et du hasard. É Lydia, embalada por Marivaux e às voltas com os ensaios do espetáculo a ser montado por sua turma de sala de aula para as festividades da escola. Já Abdelkrim, apelidado de “Krimo”, no auge dos seus 15 anos, “está de quatro” pela sua colega de sala. Ele, que se arrasta levando seu tédio pelas quebradas suburbanas em companhia de sua galera, descobre repentinamente o amor. Mas Krimo não é do gênero expansivo, alem de ter que manter a fachada. Então como se declarar sem perder a pose? Uma solução se impõe: corromper seu amigo Rachid, parceiro de cena com Lydia, para obter o papel de Arlequim. O que Krimo não ousa dizer, Marivaux o fará em seu lugar.



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Dia 11/11 (quarta-feira) – 19hrs

POVOADO NUMBER ONE

Bled Number One(França/Argélia, 2006). De Rabah Ameur-Zaimèche. Com Jeanne Balibar, Rabah-Ameur Zaimèche. Drama em cores. Duração 100’.

Mal saiu da prisão, Kamel é expulso da França para seu país de origem, a Argélia. Esse exílio forçado o leva a observar com lucidez um país em plena transformação dividido entre o desejo de modernidade e o peso das tradições ancestrais.


ATÉ JÁ

A tout de suíte (França, 2004). De Benoit Jacquot, com Isild Lê Besco, Nicolas Duvauchelle, Ouassini Embarek. Drama em cores. Duração 95’.

Ao desligar o telefone depois de um "até já" do namorado, ela sabe muito bem sem saber ainda aquilo que ela nem imaginava: aquele que ela ama, aquele "príncipe" de parte alguma é um bandido. Ele acaba de cometer um assalto, há mortos. Estamos nos anos 70, ela tem 19 anos e, como num sonho acordado, salta do espaço restrito do apartamento paterno - de longos corredores, num belo bairro - e mergulha de cabeça numa geografia fugitiva - da Espanha para o Marrocos e para a Grécia - passando de uma vida de garota normal para a vida que ela escolheu, com suas delícias e conseqüências.


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Dia 12/11 (quinta-feira) – 19hrs

O ÚLTIMO DOS LOUCOS

Le dernier des fous (França, 2006). De Laurent Achard, Com Julien Cochelin, Annie Cordy, Pascal Cervo, Dominique Reymond, Dorine Bouteiller, Jean-Yves Chatelais, Florence Giorgetti, Thomas Laroppe, Fattouma Ousliha Bouamari Drama em cores. Duração 95’.

É verão e começo das férias. Martin tem 11 anos, vive na fazenda de seus pais e observa, desamparado, a desunião de sua família: sua mãe vive enfurnada em seu quarto, seu irmão mais velho, que ele adora, se afoga no álcool e seu pai é dominado pela avó. O menino assiste a um desastre familiar. Mas Mistigri, seu gato, e Malika, uma amiga marroquina, procuram reconfortá-lo de alguma forma...


ASSASSINAS

Meurtrières (França, 2006). De Patrick Grandperret, Com Hande Kodja, Céline Sallette, Gianni Giardinelli, Anaïs de Courson, Isabelle Caubère, Shafik Ahmad, Karine Pinoteau, Marc Rioufol, Eugene Durif, Teiva Airault, Raja Aïtou. Drama policial em cores. Duração 97’.

Nina e Lizzy. O encontro de duas jovens normais e um pouco frágeis. Entre elas, uma identificação imediata... Juntas, elas são fortes, eufóricas. Sem muita sorte, nem muito dinheiro, elas tem apenas seus sonhos. Duas jovens em busca do amor. Cada instante que passa, cada encontro lhe fecha um pouco mais as portas de um mundo que elas não tem as chaves. Com nada no bolso, não se vai longe, ou diretamente muito longe...


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Dia 13/11 (sexta-feira) – 20hrs

DE VOLTA À NORMANDIA

Retour en Normandie (França, 2007). De Nicolas Philibert, Com Anne Borel, Claude Hébert, Nicolas Philibert, Nicole Picard. Drama documental em cores. Duração 113’.

Em 1975, Nicolas Philibert foi assistente de direção de René Allio em Eu, Pierre Rivière, que Degolei Minha Mãe, Minha Irmã e Meu Irmão, baseado em um crime local descrito em livre pelo filósofo Michel Foucault. Filmado na Normandia, a alguns quilômetros de onde aconteceu o triplo assassinato, o traço mais especial do trabalho de Allio era o fato de todos os personagens do filme terem sido interpretados por camponeses da região. Trinta anos depois, Philibert retorna à Normandia para reencontrar esses atores de ocasião, personagens da vida real.


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Dia 14/11 (sexta-feira) – 20hrs

A FRANÇA

La France (França, 2007). De Serge Bozon, Com Sylvie Testud, Pascal Greggory, Guillaume Verdier, Pascale Bodet, Bob Boisadan, Jean-Christophe Bouvet, Didier Brice, Philippe Chemin, Guillaume Depardieu, Benjamin Esdraffo, Michel Fossiez, Vincent Fraiscinet, Laurent Lacotte, Pierre Léon, Emmanuel Levaufre, François Négret, Cécile Reigher, Laurent Talon, Lionel Turchi, Laurent Valéro, Mehdi Zannad. Drama, Musical, Romance, Guerra em cores. Duração 102’.

No outono de 1917, a guerra prossegue. A milhas de distância do campo de batalha, a jovem Camille leva uma vida marcada pelas notícias que seu marido manda do front. Um dia ela recebe uma carta em que ele termina o casamento. Desnorteada e determinada a continuar a qualquer custo, Camille decide se disfarçar de homem para encontrá-lo. Ela segue direto ao front de guerra, cortando caminho pelos campos para evitar as autoridades. Numa floresta, passa por um pequeno grupo de soldados que não suspeita de sua identidade. Ela os segue e assim embarca numa nova vida, e conforme os dias e as noites passam, descobre o que nunca poderia imaginar, o que seu marido nunca lhe contou e o que seus novos companheiros irão evitar lhe mostrar: a verdadeira França.

5.11.09

07/11 - Mamma Roma (Pasolini)

Neste Sábado dia 07/11 às 19:30hrs
No SESC Cineclube Silenzio
ENTRADA GRATUITA

O filme marca a trajetória de Mamma Roma (Anna Magnani), uma ex-prostituta que vai atrás do filho abandonado por ela, Ettore (Ettore Garofalo), e que tenta uma vida nova junto com ele na capital italiana. Interpretada magnificamente pela atriz Anna Magnani, a personagem se vê em várias dificuldades sociais como a criminalidade que seu filho se envolve e a sua exploração pelo cafetão Carmini (Franco Citti).

Mamma Roma sonha com uma vida burguesa, mas suas esperanças se confrontam com a realidade. Ela vive em um contexto social que impossibilita a realização de seus sonhos. A vida se mostra mais dura e cheia de desencantos do que ela pode imaginar. Em seu segundo filme, o cineasta italiano Pier Paolo Pasolini faz poesia com cinema em ""Mamma Roma"". Num filme belo, porém ainda marcado pelo neo-realismo que fez escola durante as décadas de 1940 e 1950, o polêmico diretor italiano consegue pôr seu dedo malicioso e cheio de lirismo nessa película produzida em 1962.

Numa retomada dos procedimentos neo-realistas do pós-guerra, Pasolini volta sua câmera para os bairros pobres da periferia de Roma e filma a vida errante dos personagens ao som de Schubert. O filme se mostra belo e mesmo com uma clara influencia ""rosseliniana"". Só Pasolini conseguiria filmar ""Mamma Roma"" com tanto sentimentalismo sem tirar a critica social da base da história.


Ficha Técnica: ""Mamma Roma"", Idem, 1962 - 110 mim, preto & branco. De Pier Paolo Pasolini, com Anna Magnani, Franco Citti, Ettore Garofolo, Silvana Corsini, Luisa Loiano e Paolo Volponi


As Mulheres de Pier Paolo Pasolini (X)

Mamma Roma
“Flor de merda,
me libertei de um laço, agora é a vez de outra mulher ser a escrava” (1)
Sinopse (2) Durante a festa do casamento de Carmine, Mamma Roma canta para os noivos. Logo compreendemos que ela pretende atingir o marido recém-casado, que também é seu ex-cafetão. Quando ela cantarola frases sugerindo a cegueira da recém-casada esposa, esta é chamada a responder em forma de canto. Já lemos na epígrafe acima qual foi a resposta que Mamma Roma cantarolou para a mulher (imagem acima; abaixo, à direita, mãe e filho olham para o cemitério em frente ao apartamento). Em torno daquele banquete de casamento encontramos gente simples. Agricultores que, como um senhor reclama que durante um brinde, chamam pejorativamente de caipiras. Desde os primeiros momentos do filme percebemos que existe uma grande tensão social por baixo daquela festa cheia de risadas e de uma linguagem bem liberal e cheia de ironias. O choque entre essa gente do campo e a nova mentalidade dos grandes centros urbanos é que constitui o pano de fundo dessa estória.

O bem que Mamma Roma quer para seu filho acabará por destruí-lo


Mamma Roma é uma mãe de meia idade cuja vida de prostituta está para melhorar. Pelo menos essa é a opinião dela, pois, com o dinheiro que conseguiu juntar, de uma tacada só poderá se livrar de Carmine (o cafetão) (imagem abaixo, à direita), comprar uma banca de frutas e montar um pequeno apartamento na periferia de Roma. Na nova casa, ela pretende viver com Ettore, seu filho adolescente que até então morava com parentes pobres em Guidonia, uma cidadezinha próxima a Roma. Entretanto, em pouco tempo as aspirações de Mamma Roma entrarão em choque com o temperamento do filho e sua situação como um recém-chegado. Apesar dos esforços dela para ajudá-lo a se adaptar à escola, ao trabalho, a uma motocicleta, as raízes culturais dele dificultam sua sobrevivência nesse novo ambiente. No final, febril Ettore é pego roubando e vai para a prisão. Ele não se debate mais, paralisado e sozinho em sua cela. Talvez morto, talvez esteja em outro lugar. Em Guidonia talvez. E o sonho de sua mãe se dissolve no desespero.
Pasolini e as Mães

A periferia de Roma:
uma janela
para o futuro


As “mães de Pasolini” constroem uma ponte entre passado e futuro através dos filhos. Representam tanto a inalienável verdade das origens quanto o inquieto espírito de sobrevivência no presente. Apesar disso, como condição para se individuar, o filho deverá se relacionar como um “Outro” em relação à sua mãe. Entretanto, ao agir nessa direção, as qualidades de doadora de vida da mãe tornam-se inacessíveis a ele – o que constitui uma grande perda para o filho. A relação entre Mamma Roma e seu filho Ettore será o primeiro exemplo dessa problemática na filmografia do cineasta italiano.

Ao contrário do primeiro filme de Pasolini, Accattone, Desajuste Social (Accattone, 1961), que se ocupava somente das prostitutas de rua na periferia de Roma (embora houvesse duas mães, Ascenza e Nannina), em Mamma Roma (1962) ele adiciona a maternidade e o conflito de gerações à temática das classes desprivilegiadas do pós-guerra na Itália. Pasolini mostra o conflito entre o passado e o presente nessa família de dois, na mesma periferia da Roma do início da década de 60 do século passado.

A outra mãe do filme é Bruna, que representa a Mãe Jovem (Madre Fanciulla) da cultura marginal da favela em Roma. Isso quer dizer que ela reflete o ideal poético pasoliniano da mulher jovem, rústica e de uma simplicidade charmosa. Enquanto o futuro de Mamma Roma aponta para os valores do centro da cidade, Bruna ocupa um espaço antigo e anônimo fora de Roma não muito diferente de Guidonia, a cidade onde Ettore foi criado. É justamente nesses campos abandonados em torno do conjunto habitacional que vive com sua mãe que Ettore encontra Bruna. Ela se torna sua única amiga e paixão, influenciando a relação entre Mamma Roma e o filho. Bruna não é exatamente uma mãe no sentido biológico do termo, ela representa sua mãe simbólica.
Close na Mãe

Algumas coisas se aprendem desde criança!


Em Mamma Roma, as figuras maternas ainda representam importantes símbolos de inocência e autenticidade. No início do filme, durante a festa de casamento de Carmine, Mamma Roma insiste em perguntar a um garotinho se ele ama sua mãe, no começo ele dá um tapa no rosto dela (imagem acima), mas em seguida responde que sim. Carmine, rapidamente, fala para o garotinho: “Bata, moleque! É assim que se tratam as mulheres” (3). Antes de chegar a ele, Mamma Roma pergunta a todos o que são as crianças. Na seqüência seguinte, ela se encontra com Ettore no parque. Na passagem da criança pequena para Ettore, Mamma Roma recupera sua identidade de mãe, construindo a possibilidade de uma vida honesta em família – portanto, uma vida pura.
Mamma Roma também é uma Mãe Jovem (Madre Fanciulla), que na adolescência se prostitui para escapar da pobreza e de uma família opressora. Porém, a opressão ainda está lá, no esforço de seu ex-cafetão em mandá-la de volta para as ruas e destruir suas esperanças de uma vida honesta. De acordo com Pasolini, a consciência social dela fica evidente em suas aspirações materiais, embora não tenha ainda adquirido completamente a falsa consciência moral que caracterizaria a burguesia. Apesar de ela ter conseguido alguma liberdade em relação à Carmine e um emprego decente, não se inseriu completamente no mundo do centro da cidade. Essa inabilidade em mergulhar no presente e se livrar do passado a torna inocente aos olhos de Pasolini. De fato, Pasolini considerou que todos os grupos subalternos (jovens, velhos, mulher ou homem, ocidentais ou não) são genuínos.

Por dois motivos, em primeiro lugar esses grupos são expostos a diferentes formas de exclusão da sociedade. Em segundo lugar, seus modos de interação são anteriores aos comportamentos altamente conformistas de consumidores (que caracterizam as culturas ocidentais nas décadas posteriores a Segunda Grande Guerra). Não existe, para esses grupos, uma chance de escapar da opressão. Por essa razão, Mamma Roma sempre acaba subjugada pelo passado. Seja devido à perseguição de Carmine, ou os problemas de Ettore.

“Para além desses detalhes narrativos, Pasolini também expressa a inocência de Mamma Roma estilisticamente ao capturá-la em [closes] frontais, durante momentos chave do filme. Para Pasolini, este tipo de tomada tinha o efeito de suspender o sujeito para longe de uma experiência dolorosa ou ambiente deprimente, sugerindo que [Mamma Roma] de fato pertence há outro tempo e lugar, ou para indicar que a significação de seus pensamentos e ações num momento particular transcende a realidade do local. Esse tipo de filmagem em [close] é uma das técnicas características de Pasolini, que ele empregou muito durante toda sua carreira. Considere, por exemplo, as tomadas aproximadas de Stella em Accattone, Desajuste Social, ou a jovem Madonna em O Evangelho Segundo São Mateus [Il Vangelo Secondo Matteo, 1964], que está de pé diante de João quando ele entende que ela está grávida. Outro exemplo desse tipo de close simbólico acontece no casamento na seqüência de abertura em Mamma Roma, quando [ela] canta sobre sua liberdade em relação à Carmine. Outros exemplos incluem o momento em que ela vê seu filho pela primeira vez [no carrossel]; a vez que ela vai à igreja para ‘explorar’ oportunidades sociais para Ettore; a hora que ela pede ao padre que encontre um emprego para Ettore; o momento que ela chora enquanto olha Ettore trabalhando; e, finalmente, o momento em que ela descobre que Ettore morreu e olha pela janela, enlouquecida de desespero” (4)

Mães-Filhos e Elefantes
Ettore não está pronto para mudar, os ideais pequeno-burgueses da mãe o atingem como uma tonelada de tijolos


Após a festa de casamento de Carmine, Mamma Roma se aproxima de um parque onde encontra Ettore pela primeira vez. Ele está no carrossel, mas quando ela vai chamá-lo ele some – uma vida que gira e volta ao mesmo lugar, prefigurando sua vida e seu desaparecimento no final. Mas a mãe descobre onde o rapaz está e tenta alcança-lo, então Mamma Roma vê Ettore roubar de uma barraca do parque. Ainda que com a melhor das intenções, Mamma Roma começa a impor ao filho seus desejos. A subjetividade dos dois começa a se fundir, mas com a dominância dela, o que acaba gerando um profundo conflito psicológico e cultural nele, que a mãe nunca será capaz de resolver.
O impulso de diferenciação dele em relação à mãe onipotente se manifesta em sua simultânea atração/repulsão ao presente que ela apresenta e o passado, que faz o papel de útero metafórico. Ettore procura satisfazer sua mãe (vai para a escola, vai trabalhar, sai com a mulher que ela escolheu), mas ele nunca assimilará verdadeiramente os desejos dela. As imagens criadas por Pasolini mostram essa divisão emocional, como na cena do carrossel, ou quando Mamma Roma vai olhar Ettore no emprego de garçom que ela arrumou para ele (5).

Mamma Roma compra uma moto para ele, mas isso não é apenas um presente. O veículo é um símbolo de riqueza através do qual ela deseja que Ettore experimente as recompensas do trabalho duro e das metas materialistas como um incentivo para ganhar mais – é quando ela diz ao filho que um dia todos terão inveja dele, em função de seu progresso material. É exatamente neste ponto que a diferença cultural entre os dois vem à luz. Ainda no passeio de moto, Mamma Roma perguntou se ele não gostaria de ser um cavalheiro. Ettore respondeu que todos os cavalheiros são estúpidos, filhinhos de papai, e acreditam serem donos do mundo só porque têm algum dinheiro.

Ettore sente-se estranho tanto em relação ao centro de Roma quanto à periferia

Ela critica o pensamento de esquerda do filho, sem perceber que esses sinais de autonomia do filho ainda são adolescentes – como se nota pelo rápido fim da discussão em função do prazer do passeio de moto. Este é um dos momentos em que o filme faz notar o que liga e o que separa os dois: os objetivos materiais de Mamma Roma (seus olhos no futuro) e a estagnação de Ettore (seus olhos no passado). Numa primeira versão do roteiro, Ettore sonha que sua mãe está sendo atacada por um bando de elefantes e ele não consegue livra-la. Entretanto, na versão final, é o contrário que acontece, Mamma Roma e a nova sociedade que ela abraçou são os elefantes que espremem Ettore e sua diferença cultural (6).
Em vários momentos podemos ver Ettore em atos de resistência, como quando ele vende o disco antigo da mãe, com o qual tiveram alguns momentos de dança. Além disso, temos a decisão dele de sair da escola, escolher seus próprios amigos e continuar com Bruna. No final do filme, quando ele descobre que a mãe foi prostituta, destrói os planos dela completamente: declarando sua autonomia, ele rouba, vai preso, e acreditamos que ele morre. Mas ele morre chamando pela mãe e pedindo para voltar para Guidonia (o passado), às suas genuínas raízes culturais e de uma existência pobre que Mamma Roma originariamente representava. Ettore não consegue se diferenciar da mãe, o que teria permitido a ele apropriar-se das virtudes dela de forma construtiva. Entretanto, como ele não conseguiu se libertar, perpetuou-se a fantasia da onipotência maternal.
Roma é a Mãe

A verdadeira prostituta é Roma

O nome composto “Mamma Roma” nos remete a um ser ao mesmo tempo privado e público. Ela é a mãe de Ettore, mas também “Mãe” de Roma. Especialmente para “filhos” como Ettore, que cresceram na fronteira entre os mundos do presente e do passado. “Mamma Roma” é uma união de palavras que articula a mãe biológica com a noção maior de cidade/comunidade. O bem estar da sociedade está implicado na identidade de Mamma Roma, seus sonhos pequeno-burgueses colocam a sociedade em perigo: assim como Ettore não consegue criar ou recuperar sua autenticidade cultural através dela, a sociedade não pode alcançar sua própria autenticidade.

Cada vez que abriam a janela do apartamento e olhavam para Roma, o bem estar daquela relação ficava abalado


Aquilo que Pasolini considera como o mais genuíno substrato social (os pobres e marginalizados) foi cooptado, não conseguiu alcançar o progresso final de uma transformação ideológica. “Mamma” “Roma” carrega várias outras dicotomias: passado x presente, subproletariado x pequena burguesia, cultura marginal x cultura de massa. Mamma Roma representa, ao mesmo tempo, um passado inocente (Madre Fanciulla, falta de consciência política) e um presente corrupto que se manifesta em seus interesses pequeno-burgueses (casa, igreja, amigos respeitáveis, bens materiais). Mas ela também incorpora o conflito de classes, por seu desejo de livrar-se do passado e subir socialmente. Mamma Roma também está dividida entre a cultura burguesa do centro da cidade e a cultura marginal de suas raízes subproletárias (7).



No primeiro apartamento em Roma, a vista dava para o cemitério


Em duas caminhadas, onde Mamma Roma parece se dirigir às pessoas que surgem e desaparecem, mas no fundo é um monólogo, podemos perceber sua luta contra as forças que desejam derrubá-la. Na primeira, ela ainda está otimista sobre seu futuro e de seu filho. O contratempo que Carmine criou (se prostituir por duas semanas) não a abalou. Na segunda caminhada, Mamma Roma está mais resignada e seu andar mais lento e irregular. Se no primeiro caso ela comentava sobre suas origens e os motivos que a levaram à prostituição, no segundo está centrada nos obstáculos que não estavam nos planos (a interferência de Carmine e os problemas de Ettore na escola e no trabalho).

Na segunda caminhada, ela anda, anda, mas não chega a lugar algum. Ela fala, fala, fala, mas não conclui nada. Nenhuma das duas caminhadas a conduz para fora do mundo subterrâneo do subproletariado e na direção do futuro pequeno-burguês que ela almeja. As três prostitutas do filme representam o subproletariado em vários graus de assimilação cultural em relação ao discurso dominante: como as comunidades de classe baixa em torno de 1960 reagiam em relação ao simbolismo de Roma, aos ideais burgueses que gradualmente penetram os espaços urbanos (modernos projetos de conjuntos habitacionais) e as mentes (o desejo por bens materiais e maior espaço social).

“Mamma Roma claramente abraçou a ética moral e material da cultura dominante; Bruna perde-se num estado de adolescência ambíguo, mantendo-se enraizada num passado inconsciente conduzido pelo instinto; e Biancofiore está eqüidistante, dando e recebendo de cada domínio de maneira a existir confortavelmente. De muitas formas, a abordagem de Biancofiore é o mais prático, uma vez que ela não está nem totalmente limitada por um passado opressivo nem totalmente dirigida para um futuro intangível. Ela vive aqui e agora e, apesar de alguns comentários cínicos, aparenta estar relativamente satisfeita” (8)
Bruna e Biancofiore
“Estou aqui para isso! Para fazer favores às pessoas” (9) Biancofiore

Mamma Roma está decidida a afastar Bruna de Ettore, para isso pede ajuda a Biancofiore. Ao contrário de Bruna (imagem ao lado), que é apenas uma “garota fácil”, Biancofiore é uma prostituta (imagem acima), embora as duas compartilhem uma personalidade despreocupada em relação à vida que levam. Biancofiore deverá transar com Ettore e tentar fazê-lo esquecer Bruna. Durante um breve tempo ela consegue, mas logo ele volta seu interesse para Bruna, ainda que em parte como resposta ao fato de que sua mãe desaprova a relação (10).

Biancofiore garante que Ettore esqueceu Bruna, ele até disse que a levaria ao zoológico para ver elefantes – sabemos o que elefantes poderiam significar neste filme. Mamma Roma também utiliza os serviços de Biancofiore para, com a ajuda do cafetão dela, armarem uma situação para chantagear um dono de restaurante que Mamma Roma descobriu na igreja. Já que ela não conseguiu que o padre lhe ajudasse a pedir um emprego de garçom para Ettore, ela armou essa situação e conseguiu o que a sociedade (na pessoa de um representante de Deus) não lhe deu.

Bruna pode ser “fácil”, mas Mamma Roma mostrou claramente como o machismo era uma moeda corrente naquele lugar. É só lembrar da cena onde o bando de desocupados, vizinhos de Ettore e Bruna, questionam o rapaz. Eles sabem para onde Ettore a está levando, no muro ao fundo existe uma porta, lá Bruna costuma fazer sexo com seus escolhidos. O bando critica a atitude de Ettore, que na verdade está apaixonado, como se ele quisesse apenas monopolizar o corpo dela. O bando não vai permitir que sua escrava sexual seja tirada deles. Além disso, para voltar à mãe de Ettore, Carmine não parou de insistir para que Mamma Roma voltasse a ser sua escrava. No primeiro caso, desejam um corpo. No segundo caso, o dinheiro que um corpo de mulher pode conseguir.

Ao contrário de Mamma Roma, Bruna não está dividida entre dois mundos, ela pertence à periferia de Roma. Embora ela possa ser enquadrada na categoria de Mãe Jovem (Madre Fanciulla), já sabemos que ela não é uma mãe no sentido biológico. Ela apenas compartilha com Mamma Roma aquela pureza antiga. A primeira vez que Ettore a encontra, ela está cuidando de um pequeno menino. Tempos depois, Ettore a presenteia com um cordão com a imagem da Nossa Senhora e o Menino. Ao contrário de Mamma Roma, Bruna não fica empurrando Ettore em sua direção. Ela representa uma mãe subproletária antes de acordar para a consciência de classe.


Diferentemente de Mamma Roma, ela vive o dia-a-dia nos terrenos abandonados que circundam o conjunto habitacional de moradias populares onde todos moram, como se estivesse imune à vida no centro da cidade. Mamma Roma e Bruna representam dois mundos opostos. Tanto quanto os sonhos de Mamma Roma, Bruna pode acabar dificultando uma individuação saudável de Ettore. Foi Bruna quem contou a ele que sua mãe era prostituta, uma atitude típica do autoritarismo de sua própria mãe em relação à Bruna.

Ettore acaba por rejeitar as duas mães. Bruna ainda vem perguntar se está com raiva pelo que ela revelou - Ettore a derruba. Agora ele recusa o dinheiro de sua mãe. Sua condição física se deteriora, com febre, ele tenta roubar um rádio num hospital, é preso e levado para uma enfermaria. Entrar em crise e quer sair dali quando ouve alguém cantarolar a mesma música do disco antigo de sua mãe que ele vendeu – e com o qual haviam compartilhado alguns bons momentos. Amarrado em uma mesa, imobilizado, Ettore chama pela mãe e pede para voltar para Guidonia (11). Aqui Pasolini não é objetivo, Ettore não fecha os olhos. Então ele pode estar morto ou catatônico (12) (A cena foi inspirada em Cristo Morto, de Andréa Mantegna, 1430-1506). A diferenciação de Ettore (quando ele se desliga delas para construir seu próprio eu) chegou tarde. Ele não foi capaz de alcançar a conexão vital com as origens puras da vida através das duas mulheres de sua curta existência.

Encarar a paisagem na janela, depois do fim de Ettore, é a hora da verdade entre aquela mulher e a cidade que ela acreditava que ia salvar vidas



Notas: 1. “Fiore de merda,/ io me ‘so Iliberata de ‘na corda,/ adesso tocca a ‘n’ altra a fà la serva!”. SITI, Walter; ZABAGLI, Franco (eds) Pier Paolo Pasolini per il Cinema. Milano: Mondadori, 2 vols. 2001. Vol. 1, p. 158.
2. RYAN-SCHEUTZ, Colleen. Sex, the Self, and the Sacred. Women in the Cinema of Pier Paolo Pasolini. Canada: University of Toronto Press, 2007. P. 46.
3. “Menaje, ‘a ragazzì! Le donne cosi se pijano”. SITI, Walter; ZABAGLI, Franco (eds). Op. Cit., vol. 1, p. 159.
4. RYAN-SCHEUTZ, Colleen. Op. Cit., pp. 49-50.
5. Idem, pp. 51 e 238n9.
6. Ibidem, p. 53.
7. Ibidem, p. 55.
8. Ibidem, pp. 91-2
9. SITI, Franco, ZABAGLI, Franco. Op. Cit., vol. 1, p. 213.
10. RYAN-SCHEUTZ, Colleen. Op. Cit., p. 89.
11. Ibidem, p. 57.
12. SITI, Walter; ZABAGLI, Franco (eds). Op. Cit., vol. 1, p. 261.


cinemaitalianorao.blogspot.com/.../as-mulheres-de-pier-paolo-pasolini-x.html

22.10.09

24/10 - O Alucinado (Luis Buñuel)

Neste Sábado 24/10 às 19:30hrs
no SESC Cineclube Silenzio
ENTRADA GRATUITA


Francisco mantém uma imagem de homem tranqüilo, conservador e religioso. Durante uma missa, conhece Glória, noiva de um amigo. Em pouco tempo, consegue separá-los e casar-se com a jovem. Depois do casamento, passa a ser um homem paranóico, ciumento e atormentado. Fascinante drama psicológico marcado por crítica feroz à burguesia e ao clericalismo, O Alucinado é considerado pela crítica mundial como uma das obras máximas do mestre Luis Buñuel. Inclusive, o próprio cineasta costumava afirmar que este era um dos seus trabalhos favoritos.
Gênero Arte
Atores Arturo de Cordova, Delia Garces, Luis Beristain, Manuel Donde, Aurora Walker, Carlos M. Baena, Fernando Casanova, Rafael Banquells, Roberto Meyer,
Direção Luis Buñuel,
Idioma Espanhol,
Legendas Português,
Ano de produção 1952
País de produção México,
Duração 90 min.

O ALUCINADO (El/1953)

É junto com "If"... (1968), de Lindsay Anderson, o título de filme mais diminuto da história do cinema, o mesmo, aliás, do livro da escritora espanhola Mercedes Pinto, do qual o filme é adaptado. E o mais bizarro. Como se sabe, "El" corresponde ao nosso "O". "O" o quê? No caso, refere-se ao personagem Francisco Galvan (Arturo de Córdova), e o fato de não haver nenhuma palavra que complete o artigo, como no título em português, oferece ao espectador a oportunidade de situar Francisco em algumas características próprias de um homem mental e psiquicamente enfermo. Não é apenas a questão do ciúme doentio. Na verdade, à medida em que a história se desenvolve, ele vai se desvendando ao espectador como um paranóico, um fetichista, e com uma frequente oscilação de humor no relacionamento com a esposa Gloria (a bonita e fina Delia Garcés), que num piscar de olho pode passar do afeto para a agressividade até física. Além disso, Francisco é vítima de uma idéia fixa, a de recuperar antigos terrenos da família desapropriados.
"O Alucinado" começa numa igreja. É a época da Semana Santa e está sendo realizada a cerimônia de lava-pés. Francisco está entre os homens que auxiliam o padre, colocando a água na bacia. A câmera flagra o olhar atento de Francisco para os pés que são lavados e, em seguida, desloca o seu olhar para os sapatos de Gloria, primeiramente juntos com os de outras mulheres e depois se detendo nos dela.
É bem de Buñuel que a paixão de Francisco por Gloria se inicie numa igreja e que ele seja um homem religioso. O seu anticlericalismo leva-o a criticar a outra face daqueles homens que têm a religião como uma fachada para merecerem o respeito e a admiração das pessoas, sobretudo as do clero. O padre jamais irá acreditar em Gloria quando ela vai lhe relatar a conduta cruel, perversa e violenta do marido. Nem a própria mãe dá credito às suas queixas. Somente Raul (Luís Beristáin), o ex-noivo, acredita nela. Aliás, o reencontro dos dois, a partir do qual, por meio de um flashback, Gloria conta o seu relacionameno com Francisco, me parece algo artificial, inclusive com um toque de melodrama (ela é quase atropelada pelo carro que ele dirige), um escorrego do roteiro escrito por Buñuel, em parceria com Luís Alcoriza.
É na mesma igreja que o estado psíquico e mental do personagem atinge o grau máximo. Em um casal que avista entrando na igreja ele acredita que são Gloria e Raul e vai atrás deles. Vendo que se enganara, deixa-se ficar num banco e, a partir de um dado momento, começar a "ouvir" e a "ver" dos fiéis risadas e gestos zombeteiros. Quando "percebe" que o velho padre, tão seu amigo, participa também da assuada, não se contém e parte para agredir o sacerdote. É quando este conclui que o seu amigo está muito enfermo.
"O Alucinado" é um filme na medida para os que se dedicam à psiquiatria e à psicanálise. Jacques Lacan, por exemplo, tinha um grande apreço por ele, conforme o demonstrou numa longa conversa com Buñuel. Lacan, inclusive, participou de uma sessão do filme, cujos espectadores eram todos seus colegas. É o que o diretor revela no seu livro "O Meu Último Suspiro".
Não podemos saber até que ponto a construção do personagem pertence à autora do romance e a parte que cabe a Buñuel, já que não conhecemos o livro. Mas pelo que conhecemos da filmografia do espanhol, que passou grande parte da sua vida no México e lá faleceu, ele certamente acrescentou ingredientes à composição desse doente Francisco Galvan. E a sua marca autoral é percebível, sobretudo, no propósito de, através do personagem, incomodar, perturbar, causar impacto no espectador, o que ele fez desde o seu primeiro filme, "Um Cão Andaluz", em 1928. Se isso é uma das funções da arte, Buñuel é um dos seus mais expoentes arautos.
Pode-se dizer, sem medo de errar, que a presença forte da religião no filme, que começa e termina num local religioso (no caso do final, num mosteiro, onde Francisco foi parar, depois de se tratar numa clínica), é da responsabilidade dele. E a cena que encerra "O Alucinado", com Francisco vestido de monge, com o capuz cobrindo a cabeça, caminhando em ziguezague, é buñueliana por excelência.
Escrito por Francisco Sobreira http://luzesdacidade.blogspot.com

8.10.09

10/10 - Nostalghia (Andrei Tarkovsky)

Neste Sábado dia 10/10 às 19:30hrs

no SESC Cineclube Silenzio

ENTRADA GRATUITA





Nostalgia - 1983 - (Nostalghia)

Colorido - 121 min. - Fullscreen Letterbox (4:3)


Gortchakov é um poeta russo que viaja pela Italia acompanhado pela bela Eugenia, sua guia e tradutora. Sua missão é pesquisar sobre a vida de um compositor russo do século XVIII. em uma antiga cidade, eles encontram o lunático Domenico que anos atrás, aprisionou sua própria família em um celeiro para protegê-los dos perigos do mundo. Na medida em que Eugenia seduz Gortchakov, percebendo alguma verdade no ato de Domenico, ele se sente atraído pelo lunático. Através de uma série de sonhos, o poeta recorda sua terra natal e sente saudade de sua esposa, seus sentimentos ambivalentes por Eugenia e sua Italia, e sua afinidade com Domenico se entrelaçam ainda mais. Primeiro filme feito fora da Rússia do cineasta e poeta Andrei Tarkovski. Vencedor de 2 prêmios em Cannes.


Marcante... uma experiência que você jamais esquecerá.

Chicago Tribune.



A cena de Nostalghia (1983) em que o poeta russo exilado Andrei, segurando uma vela, atravessa a piscina vazia de uma estação termal na Itália, cuidadosamente evitando que ela se apague, tem clara ligação com o ato final do protagonista de O Sacrifício.
Em ambos, o sentimento agudo da insuficiência espiritual do mundo moderno leva a um ato de entrega a uma dimensão que, para o racionalismo, nada pode ser senão loucura ou irracionalidade.
A piscina vazia, sem água, sem o elemento envolvente, remete simbolicamente a um mundo também vazio e sem capacidade de acolhimento e proteção. Na água, somos envolvidos, acolhidos. E como diz o "louco" Domenico, duas gotas d'água fazem uma só. As quantidades se tornam unidade.
Na casa de Domenico, cujo teto esburacado permite que a água da chuva a penetre livremente, o belo enquadramento de Tarkovsky permite observar na parede um grande pano estendido onde se lê: 1+1 = 1. Mais uma vez o motivo da quantidade que se faz unidade. Perece querer dizer-nos que a quantificação, que define o mundo moderno, não pode ser universal e nem dar conta de todas as dimensões do espírito humano. Domenico proclama dimensão humana de busca pela unidade e pelo Absoluto.
A água remete também ao elemento de origem, a fonte de onde saímos e da qual temos nostalgia. A piscina vazia é como um útero vazio, estéril, sem fertilidade. Não é à toa que as mulheres piedosas do início do filme pedem à Santa Maria que conceda à uma jovem o filho que ela tanto anseia. É ao espiritual, ao supra-racional, que nosso mundo moderno deve se voltar a fim de que haja futuro.
A piscina vazia significa também um exílio ontológico. Ela é a imagem do percurso terreno que, por sua natureza, se dá na ausência do contato direto com Deus. Só se pode atravessar esse exílio com uma vela acesa nas mãos. Com uma luz sempre prestes a apagar e que, de fato, diversas vezes se apaga durante o caminho. A vela é o símbolo da dimensão sobrenatural da fé sempre ameaçada de esquecimento. Levar essa vela, cuidar dela, no entanto, é condição para atravessar o caminho e, como afirmava o "louco" Domenico, salvar o mundo.
Andrei assume essa responsabilidade e atravessa o caminho daquela piscina vazia e morre segundos após completar sua missão. Na cena final, ele reaparece, sentado na grama em frente à casa da qual sentia uma nostalgia terrena e, acima e aos lados, colunas de uma antiga igreja, símbolo do absoluto do qual sentia uma nostalgia espiritual.
A cena em si é uma representação do lugar do homem e de sua realização plena. O temporal imerso no eterno, e o terreno envolto pelo celeste. Uma alegoria da imagem cristã do destino humano último, a ressurreição, onde o espiritual e o corporal estarão unidos de forma perfeita?
Decerto uma expressão do anseio humano mais íntimo, o anseio de plenitude. Vale lembrar aqui a resposta de Deus à Santa Catarina de Sena, citada pelo "louco" Domenico: " tu és aquela que não é e Eu Sou aquele que é."




Nostalgia como o desejo do retorno – de um vazio incondicional, de uma essência que estaria ecoada enquanto ruptura com o presente. Religião, religar-se: um certo sentimento de abismo que parece tender sempre a um inalcançável. Nostalgia como a loucura, essa memória do novo, a "voz que não escutamos". Tarkovski traça um filme nos limites do humano, como anjos caídos a ouvir (ao longe) as palavras de um Deus nunca-presente, por entre pilastras frias e atravessadas pela presença de um Ser indefinível. O poeta russo carrega a memória de seu passado, o louco Domenico carrega o desejo de a um só tempo poder esquecer-se de tudo e relembrar-se do Todo. Nostalgia aparece como esse sentido inescapável de eternidade, de que há algo de sempre pequeno e de sempre inexprimível em cada gesto que ultrapassa as diferenças sociais, culturais, políticas, econômicas... humanas.

O mundo nos aparece como uma espécie de caverna, de masmorra cheia de belezas ímpares, mas úmida e enevoada como as piscinas de água quente. As vozes (e Tarkovski passeia com a câmera encontrando vazios e nucas), parecem vir de algum lugar-outro que não das bocas de seus personagens, de suas figuras, de seus vultos. O som pregnante de goteiras, de serras elétricas, de cantos ecoados pelos corredores do hotel/casa-de-banho onde se hospeda o professor: tudo remete ao cenário inicial do templo de Nossa Senhora do Parto, onde mulheres caminham em círculos, murmurando nas sombras. Os raccords falsos, a câmera que descobre paredes em travellings sem rumo, os personagens que surgem de baixo do quadro como que se erguendo do chão, as paredes enrugadas (e, nesse sentido, a cenografia do filme é primorosa).

Há uma fantasmagoria que percorre a narrativa, onde os corpos circulam, passeiam, em movimentos marcados, duros, como as representações inertes de figuras-imagens que estão não-mais-ali (como as estátuas de que fala Domenico). É o gesto da pesquisa, da arqueologia (a busca pelo passado) que vai desencadear, nesse labirinto, a possibilidade de alguma ruptura, de algum sentimento de recomeço intuído, mas nunca enxergado. É a partir do encontro do taciturno professor (em sua busca pelas memórias de um compositor russo obscuro) com o misterioso Domenico (funcionário da casa-de-banhos) que o filme se conjuga em direção a uma trágica e incontornável alegria. Incontornável como a promessa de atravessar a piscina levando nas mãos a pequena vela acesa...Como se todo o filme, todo o perambular da câmera parecesse nos levar, hipnotizar (em um mantra) em direção às duas seqüências finais: a da morte-suicídio de Domenico em meio à cidade de Roma (a imagem-clichê da cultura ocidental) e a do atravessar da piscina com a vela nas mãos. A articulação entre essas duas seqüências funciona como o desaguar de todos os minutos anteriores do filme.

Primeiro, o momento trágico em que Domenico põe fogo no próprio corpo (diante de uma multidão de estátuas, de mármore e de carne) e ouvimos a Ode à Alegria de Beethoven (numa trilha sonora diegética/não-diegética em que não vemos a fonte da música, embora percebamos que ela está sendo reproduzida "dentro do filme", por um aparelho precário), seguida do grito seco do homem que sente seu corpo tomado pelas chamas. Em seguida, segundo momento, vemos as mãos do professor tentando acender o pequeno pavio de um pedaço de vela. Diante de uma piscina de águas termais, agora vazia, tem início uma das cenas mais antológicas de toda a filmografia de Tarkovski: num único plano-seqüência, acompanhamos o professor levar (entre as palmas das mãos) a chama frágil da vela, indo de um lado ao outro da piscina. Apesar de todo cuidado e concentração do professor, a umidade do ambiente é muito grande e a vela insiste em se apagar. Mas o professor continua sua tentativa, reacendendo a vela, e repetindo o trajeto desde o início. A mesma força destrutiva do fogo agora aparece naquela pequena e frágil chama, tão suscetível a se apagar a qualquer momento, a qualquer movimento brusco. É a insistência, a resistência – um sentido primordial de promessa e da vontade – que fazem com que o professor perpetue sua tentativa... até conseguir.

Esse pequeno ritual, simples, aparece no filme como a imagem-limite, como o gesto de reencontro final do personagem com toda a densidade e o peso de suas lembranças (e daquilo que, em seu corpo, se torna inexprimível). A umidade do ambiente, a batalha entre o fogo e a água (que cria o vapor denso das piscinas termais e que o impede de enxergar mais adiante). Em off, o professor só consegue grunhir, como se tivesse se ultrapassado, enquanto vemos a vela já posta do outro lado da piscina. Final do percurso, do ritual, do calvário – restam as reticências de uma imagem preto-e-branco onde o professor finalmente se deita "por dentro" de seu passado, ao lado de um velho cão, e fita o céu distante agora refletido no chão, numa poça d`água. Tarkovski finda assim essa pequena obra-prima de cinema-posado e de poesia gráfica; apostando em imagens que são antes de tudo sintomas pulsantes, tensões da forma e dos sons, numa vivacidade que se não está localizada em cada um de seus personagens-estátuas, parece percorrer o filme como uma espécie de energia não-localizável, intuída, tão frágil, tão poderosa e tão passageira quanto a chama que queima (que tanto pode atravessar os corpos quanto desaparecer em um leve bufar de vento) e que alguns chamariam de "fé". Não uma "fé" resumida neste ou naquele estatuto, mas uma "fé" primordial, talvez, na própria sobrevida do cinema para além de tudo o que se possa alcançar, que se possa conter nas imagens. Nostalgia, mais do que um retorno ao passado, é esse desejo, sem-solo, de se tocar, de se contagiar (e contagiar o espectador) com um sentido indecifrável de eternidade. E esse é o grande êxito do filme, e de Tarkovski.


Felipe Bragança


24.9.09

26/09 - Uma Noite sobre a Terra (Jim Jarmusch)

Neste Sábado 26/09 às 19:30hrs
no SESC Cineclube Silenzio
ENTRADA GRATUITA






Sinopse:
"Uma Noite Sobre a Terra” (1991) – Jarmusch (de Down by Low) cria aqui uma fragmentação em cinco histórias curtas para novamente debater a questão da comunicação. São cinco narrativas em cinco países diferentes que têm como eixo a relação entre motoristas e passageiro de táxis, sempre com o humor disfarçando um travo melancólico, algo niilista da trama. Elas acontecem simultaneamente em cinco cidades distintas, Los Angeles, Nova Iorque, Paris, Roma, e Helsinque. Essa relação curiosa de solidariedade, sempre passageira (sem trocadilho), que ocorre num táxi, quase sempre intensa, mas que dura apenas o tempo do trajeto, é retratada de forma original. “Uma Noite Sobre a Terra” é também o filme mais bem sucedido financeiramente do diretor.


Atores:
Winona Ryder, Gena Rowlands, Roberto Benigni, Matti Pellonpõõ, Paolo Bonacelli, Tomi Salmela, Sakari Kuosmanen, Beatrice Dalle, Isaach de Bankolé, Giancarlo Esposito, Rosie Perez, Kari Võõnõnen, Armin Mueller-Stahl
Diretor: Jim Jarmusch
Duração: 130 minutos
Origem: EUA


10.9.09

12/09 - Sem Sol (Chris Marker)

Neste Sábado dia 12/09 às 19:30hrs
no SESC Cineclube Silenzio
ENTRADA GRATUITA


Sem Sol

Sans Soleil (França, 1983).

Se você acredita que um filme é mais do que uma história contada com começo, meio e fim, então não deve deixar de conhecer Sem Sol, um belo exemplar do cinema de ensaio, misto de documentário e indagação estético-filosófica que se tornou a marca registrada de Chris Marker. Em Sem Sol, acompanhamos num transe quase hipnótico a narração das cartas de um cameraman que viaja pelo mundo. Do Japão à Guiné Bissau, da Islândia aos Estados Unidos (a São Francisco de Um Corpo que Cai), ficamos atônitos diante da elegante meditação sobre o tempo e a memória tecida por Marker.
Gênero Documentário
Atores Alexandra Stewart, Jean Negroni, Etienne Becker, Davis Hanich, Jacques Ledoux, Helene Chatelain,
Direção Chris Marker,
Idioma Francês,
Legendas Português,
Ano de produção 1982, 1962
País de produção França,
Duração 100 min.
Apesar do longo espaço de tempo que os separa, La Jetée e Sem Sol são dois filmes que se complementam. Não são filmes que precisam, necessariamente, ser vistos juntos; porém, quando postos lado a lado, o mínimo que se pode dizer é que se potencializam. Se Sem Sol se impõe como um ensaio livre, inclassificável até, La Jetée é um dos poucos filmes de ficção de Marker. Justamente o cineasta que nunca conta histórias constrói, neste curta-metragem (29 minutos), uma das mais bonitas histórias já contadas - a história de um homem assombrado por uma imagem de infância. Na verdade, La Jetée pode ser considerado um foto-romance, uma seqüência de fotos inanimadas e que, no entanto, se movimentam, criam escalas dentro do quadro, através do ritmo da edição - o excepcional trabalho de Marker com o som e com a montagem, próximos, como quase todos os trabalhos do cineasta, da linguagem multimídia. Mas a opção do artista em fazer um filme com uma simples máquina fotográfica não se pode justificar apenas por questões econômicas. La Jetée é um filme sobre recordações, registros da memória em um mundo destruído, o que faz suas imagens paradas ganharem, por conseqüência, uma força assustadora.

La Jetée funciona por zonas. Zonas de memória, zonas de tempo e de espaço, zonas de registro. A função de seu herói é justamente viajar por essas diferentes zonas, todas indefinidas, e trazer aos cientistas que lhe fazem de cobaia o seu registro. Sua obrigação é fazer de um registro pessoal, imagens particulares de uma afeição particular (e não há nada mais bonito do que essas imagens de natureza, de crepúsculo, visões ou instantes parados da vida do herói, que aparecem de repente, tão quentes, habitáveis, acolhedoras aos nossos olhos...) um guia para a humanidade. É juntar sua história íntima à História. Porém, à medida que a narração se desenvolve, e as imagens se sucedem, as zonas se confundem, e não sabemos mais se, na verdade, o herói não estaria viajando dentro de sua própria zona. Sua visão do passado, ou do que acreditamos ser passado, surge como um símbolo do cinema: essa capacidade de "objetivar" os elementos registrados – e, portanto, ser um instrumento de memória. Mas trata-se da memória sob um ponto de vista pessoal, relativo... A confusão parte do princípio de que não sabemos ao certo se os cientistas o projetam para um passado real, ou se ele próprio fabrica ou adapta suas próprias lembranças. Nesse caso, mais do que uma viagem no tempo, estaríamos diante de uma viagem na memória.

Viagem na memória que parece amplificada em Sem Sol, levada ao paroxismo (o filme possui, inclusive, algumas imagens tiradas do curta anterior), através de uma outra linguagem. Como já foi dito antes, Sem Sol é um filme-ensaio. Viajando entre os "dois pólos da sobrevivência", Japão e África, fica nítida a presença de Marker, sua visão da existência; embora mascarada, ela assombra cada plano, pronta para juntar mundo íntimo e coletivo. Aqui ela se esconde sob esse nome misterioso de Sandor Krasna, um cineasta que, como Marker, está "sempre muito longe", nos quatro cantos do planeta, e que manda fragmentos de seu trabalho a seus amigos, para que eles os juntem, como se junta um quebra-cabeças. E se a montagem desse quebra-cabeças se dá através dessas famosas "cartas de Sandor Krasna", lidas no filme pela narradora Florence Delay, não é apenas para criar um "clima misterioso", mas também para remeter à nostalgia e à ternura que existe no ato de enviar uma carta. Repetindo a metáfora de La Jetée, o cinema é mesmo uma arte da memória.

Trabalhando com as cartas imaginárias de um cineasta imaginário, e com imagens reais que formam filmes imaginários – que Marker sonha em fazer, mas que sabe que nunca irá realizar – Sem Sol se aproxima do Ficções de Jorge Luis Borges, livro que, através do comentário de outros livros e escritores imaginários, tece uma reflexão sobre o tempo, o espaço, e as ligações entre arte, realidade e memória coletiva. O filme se abre com um prefácio: a imagem de três garotinhas numa estrada, na Islândia, em 1965. Como explica a narradora, esta é para o Cineasta (a partir de agora usaremos este nome para juntar, numa só figura, Marker, Krasna e o texto da narradora) a imagem da felicidade absoluta. A narradora também explica que o Cineasta já tentou diversas vezes associar esta imagem a outras imagens – mas aquilo nunca funcionou.

Essa idéia diz muito bem o que é Sem Sol: um filme aberto, uma grande corrente, sem fonte de origem, nem destino final. Aqui as imagens, as palavras e os sons se abrem para a reflexão como janelas de um hipertexto. As origens dessas imagens não têm muita importância: elas vêm de todos os lugares. Algumas foram filmadas por Marker, ao longo de sua vida, nos diferentes lugares por onde passou; outras "pertencem" a diferentes cineastas, são imagens emprestadas, que Marker vai embaralhar no seu enorme brouillon, para dar um novo sentido a todas elas (e aí tanto faz se são imagens de Marker ou de outros cineastas. Não há, afinal, diferença entre recriar uma imagem sua ou de outra pessoa). Na verdade, Sem Sol é a perfeita definição do que é a complexidade, ou seja, soma de idéias/imagens simples e conhecidas que formam um conjunto inesperado. O trabalho de Marker é juntar duas imagens com a narração, sem necessariamente tirar daí uma idéia "objetiva" – a não ser que se trate de uma objetividade da "desordem", uma desordem visual e sonora, como as que vemos nas ruas da metrópole. Em seu livro Le Depays, o próprio Marker explica: “O texto não comenta as imagens, assim como as imagens não ilustram o texto. São duas séries de seqüências que, evidentemente, chegam a se cruzar e criar signos; mas seria cansativo tentar confrontá-las. O melhor, portanto, é tomá-las na desordem, na simplicidade e no dédoublement, como convém tomar todas as coisas no Japão.".

A edição de Marker é um maravilhoso fluxo de planos, onde se juntam, num tempo indefinido, imagens presentes e imagens de arquivo, registro e ficção (e registros de ficções), e que absorve fragmentos do imaginário humano, "pedaços de memória";. Como a televisão, essa "caixa de lembranças". É, aliás, observando o louco mosaico dos canais de TV do Japão, passando do erotismo aos filmes de horror, das notícias de terremoto aos ídolos adolescentes, do terror ao afeto, da tragédia à vertigem, que Marker casa a instabilidade das imagens à instabilidade do mundo, numa definição do imaginário japonês: "A poesia nasce da insegurança: judeus errantes, japoneses com medo. Vivendo sobre um tapete prestes a ser puxado pela natureza zombeteira, habituaram-se a viver num mundo de aparência frágil, fugaz, revogável. Trens que voam de planeta em planeta, samurais que lutam num passado imutável, isso se chama à instabilidade das coisas".

Dentro do ritmo frenético do cotidiano, lugar de acumulação e eco, o Cineasta abre uma hipótese: a de ele próprio ser imagem. Movimentando-se dentro da cidade, o olhar perdido entre a velocidade das luzes, as galerias subterrâneas, os rostos fantasmagóricos que vêm e que passam, surgem e desaparecem, o Cineasta acaba duvidando de sua própria função dentro dos campos de percepção: "Me pergunto se estes sonhos são realmente meus, ou se fazem parte de um conjunto, de um gigantesco sonho coletivo, do qual a cidade seria uma projeção". As imagens mostram filas humanas, e o Cineasta se interroga se cada mente contida naquela multidão não estaria ali, construindo aquele espaço: "O trem, cheio de pessoas que dormem, junta todos os fragmentos dos sonhos, e faz deles um só filme, o filme absoluto". E, mostrando imagens da enorme massa passando nas catracas do metrô, com seus bilhetes, comenta: "Os bilhetes do distribuidor automático tornam-se tíquetes de entrada". Tudo não passa de um grande sonho, um grande filme, sonhado e dirigido por você, por mim, por todos nós. Já que "os que olham imagens são vistos, por sua vez, como imagens ainda maiores que eles mesmos", o espaço se torna impessoal, como o simulacro de Jean Baudrillard: "ser apenas a imagem de uma imagem". Daí a necessidade de Marker em ligar a imagem a uma memória. É o que Jean Giraudoux chamava de enumeração: colocar entre as coisas o afeto de como as percebemos, para não nos perdermos entre elas – e nem as esquecermos. No entanto, se existe uma memória involuntária (e Marker se interessa especialmente pelas novas tecnologias audiovisuais, os videogames e as imagens eletrônicas, que moldam parte de nossa realidade), nos resta compreender, como bem observou Jean-Xavier Ridon, como Marker tenta reconstruir a dinâmica dessa "memória involuntária". E nos resta, também, buscar nossa própria relação com a imagem como indivíduo, as diferenças de recepção... O que sou Eu? O que é o Outro? O que é o Eu dentro do Outro? O que é o Outro dentro de mim? A exemplo do herói de La Jetée, trata-se de dar sentido a uma imagem pessoal, encaixá-la dentro de um imaginário coletivo. Mais uma vez, ligar nossa percepção da História a História. Exatamente como a imagem das três garotinhas islandesas, esse plano solitário, perdido, esperando ser ligado a outro plano.

Em determinado momento do ensaio, o Cineasta tenta fugir do espaço impessoal e sonha "um mundo em que cada memória pode criar sua lenda" – e aí saímos do Japão para irmos até San Francisco, a San Francisco de Um Corpo Que Cai, que se encontra, forçosamente, com a Paris de La Jetée, no símbolo das linhas concêntricas no tronco da árvore, presente nos dois filmes, e nas duas cidades. Nesse ponto de Sem Sol, Marker cita explicitamente sua própria memória, seu próprio imaginário, criando associações de seus próprios filmes com o de um outro cineasta, Alfred Hitchcock. Um Corpo Que Cai, filme da "memória impossível, louca", visto 19 vezes pelo Cineasta, obriga-o a fazer essa peregrinação por San Francisco, em busca das memórias das imagens, do que sobrou do que foi registrado (o museu, o cemitério, a sequóia...). Assim como Marker em La Jetée, Hitchcock trata de um homem que acaba na "impossibilidade de viver com a memória a não ser que se a falseie, criando um dublê de Madeleine, em outra dimensão do tempo, uma zona só dele, de onde poderia decifrar a história indecifrável". Mais tarde, Terry Gilliam cruzaria mais uma vez os dois filmes, na cena do cinema de Os Doze Macacos, em que Bruce Willis e Madeleine Stowe, como dois fugitivos do Tempo, emperucados, criando dublês de si próprio, assistem a uma sessão noturna de Um Corpo Que Cai.

Um dos filmes imaginários propostos por Marker é uma ficção científica sobre um homem do futuro vindo de uma civilização dotada de uma memória total, que nada esquece, e que retorna ao passado para compreender o esquecimento (como se vê, algo próximo de La Jetée). Não é mais uma história sobre um homem que perdeu a memória, e sim a história de um homem que perdeu o esquecimento ("uma memória total é uma memória anestesiada"). E que, ao voltar a uma humanidade primitiva, se afeiçoa com seus antepassados, esses seres capazes de se emocionar com um retrato, uma lembrança, uma música... O viajante do futuro compreende que todos esses sentimentos causados pela lembrança, vestígios dolorosos de uma pré-história, é que fazem a beleza trágica da humanidade. Sem a possibilidade do esquecimento, não há memória, nem tentativa de registro. A memória humana é "como garrafas jogadas ao mar". É essa parte de nós que "se obstina a desenhar nas paredes das prisões", traçando os contornos do "que não existe, não existe mais, ou ainda não existe". Sua construção é a verdadeira aventura humana, nossa viagem através do tempo, nossa permanência, nossa passagem de bastão. Haverá algum dia uma última carta?
in Contracampo
www.contracampo.com.br/86/dvdlajetee.htm