13.5.07

Noites de Cabíria (Federico Fellini)

Uma das obras-primas do cineasta italiano Federico Fellini (1920-1993), é o filme do próximo sábado dia 19 de maio no SESC Cineclube Silenzio, incorporando uma sequência vetada pela Igreja na época de seu lançamento, em 1957. Noites de Cabíria levou o Oscar de melhor filme estrangeiro e melhor atriz em Cannes para Giuletta Masina, mulher do diretor e protagonista de Julieta dos Espíritos e A Estrada da Vida, também de Fellini.

Cabíria é enganada por todos os homens que encontra.
Giulietta é Cabíria, uma prostituta ingênua que acredita no amor perfeito e na sinceridade humana. Na primeira sequência, ela é atirada em um rio pelo namorado Giorgio (Franco Fabrizi), que sai correndo com a bolsa e o dinheiro. Ao ser resgatada, ela não consegue aceitar a crueldade e a sordidez contínua de sua condição, prosseguindo em um caminho de ascese através do sofrimento.

Depois do desencanto com o cafetão que a explora, Cabíria se envolve com Alberto Lazzari (Amedeo Nazzari), com outros homens, sempre confiando na humanidade de seu próximo amante afim de finalmente encontrar aquele homem que a traga felicidade.

A passagem vetada pela Igreja é bem mais inocente do que a profissão da protagonista supõe. É o encontro de Cabíria com um benemérito que sai pela cidade distribuindo alimentos aos mendigos em um saco. Para a Igreja, este tipo de caridade individual pressupõe a indiferença da instituição laica frente à miséria, uma passagem mais indecente que o ganha-pão da prostituta mais comovente do cinema.


Cássia Borsero em ZAZ Cinema



Texto de Federico Fellini:


Adaptar o Personagem ao Ator


Se penso nos filmes que rodei com Giulietta, posso dizer que a construção de minha personagem é baseada inteiramente nas suas possibilidades de atriz. Em geral, quando penso em uma história, já sei com bastante exatidão quais serão os intérpretes de meus personagens principais. Por exemplo, Os Boas Vidas foi escrito sob medida para Sordi, para Trieste, para Interlenghi, para meu irmão... O único personagem que, no momento em que escrevia meu roteiro, eu não sabia por quem seria interpretado foi confiado a Franco Fabrizzi. Fiz numerosos ensaios e finalmente me decidi por Franco. Assim, quando escrevo uma história, já sei qual ator chamarei para cada papel. Mas às vezes, quando o roteiro está terminado e estou pronto para filmar, descubro que o ator em que tinha pensado não está livre, como ocorreu para A Trapaça. Escrevendo o roteiro, eu tinha pensado em Humphrey Bogart, mas na última hora – contar o porquê levaria muito tempo – o ator não estava mais disponível; tive de me decidir então por Broderick Crawford, que não conhecia senão por intermédio de fotografias, pois não tinha visto Les Fous du Roi, filme do qual arrumei uma projeção quando Crawford chegou na Itália. Houve então, de minha parte, uma adaptação do personagem a Crawford, a suas possibilidades de ator e a sua silhueta volumosa, totalmente diferente daquela de Bogart que, vocês se lembram, era muito mais parecida com a de um lobo faminto, com um rosto fundo, e que talvez fosse exprimir com mais eficácia o desespero de uma vida esgotada. Em suma, a melancolia profunda de Bogart teria sido provavelmente mais eficaz que aquela de Crawford. Para Crawford, precisei fazer algumas transposições, o que sempre faço com bastante prazer, pois creio que o imprevisto, o imprevisível, é às vezes um elemento positivo pra o sucesso de uma obra. Quando não posso encontrar o ator que quero ou quando não sou bem sucedido na busca de um rosto tal como minha imaginação o havia concebido, ponho-me com uma grande desenvoltura rumo a outra solução.


Em suma, eu gostaria de dizer isso: que jamais cometo (e talvez esteja aí o único sistema que se pode identificar no meu método de trabalho) o erro – pois isso me parece um erro – de adaptar o ator ao personagem, mas faço sempre o contrário, o que significa que me esforço para adaptar o personagem ao ator. Nunca peço ao ator um esforço de interpretação particular, ou seja, nunca me obstino a fazê-lo dizer meus diálogos num dado tom. O caso de Giulietta interpretando Gelsomina é o único exemplo em que obriguei uma atriz que tem um temperamento exuberante, agressivo, até pirotécnico, a fazer o papel estilizado de uma criatura retraída de timidez, com um clarão de razão e de gestos sempre no limite da caricatura e do grotesco. Isso me demandou um esforço muito grande e nesse caso particular, Giulietta, contrariamente ao que ela fez por Cabiria, precisou de um esforço de interpretação muito grande, porque Gelsomina é uma “interpretação” enquanto “Cabiria” estava muito mais na sua afinação, com sua agressividade, seu temperamento quase um pouco alucinado, sua prolixidade.


Quando dirijo meus atores, em geral mimetizo completamente a ação e tento dar eu mesmo aos diálogos a entonação que me parece a boa. Mas às vezes, para não arriscar de influenciá-lo, para não obrigar o ator a me imitar, gosto de ver o que ele faria por si próprio. A esse propósito posso dizer uma coisa: é que minha inspiração, no que concerne á interpretação dos atores, vem principalmente entre a filmagem de um e outro plano, durante os momentos em que o ator vai se sentar numa cadeira, em que ele pede seu lanche, em que ele flerta com uma figurante, em que ele vai telefonar ou em que ele tira uma soneca.


É sempre difícil remontar justo à fonte da inspiração, mas eu poderia contar a esse propósito como nasceu o fim de Noites de Cabíria. Ele não nasceu apenas como fim, mas também como a idéia geradora de todo o filme. Quando um certo jornal de esquerda me acusou de ter uma atitude evasiva perante a realidade, de nunca sugerir nas minhas histórias uma solução, um ponto de vista preciso, esforcei-me em agir com humildade sem levar em conta a irritação que senti ao ler coisas que realmente não esperava, e disse a mim mesmo: efetivamente, Zavattini e de Sica sugerem a inscrição a um partido, assim como sugerem alguma coisa a seus personagens, dão-lhes uma direção, e isso porque eles têm uma certa fé que eu não tenho, ao menos não num sentido preciso. É por isso que, ao fim de seus filmes, suas histórias e seus personagens satisfazem mais que os meus. Então eu me disse: talvez esses senhores tenham razão. A meus personagens, não termino por dizer ao fim do filme: “Vocês compreenderam direitinho, é preciso comprar tal jornal, ou também é preciso se casar, ou também ir à igreja...”. Não termino por lhes dizer nada.


No fundo, essa é uma atitude muito inumana da parte de um autor perante seus personagens. Portanto, investindo toda minha boa vontade (como se eu tivesse enfim resolvido dizer a meu personagem: “Você compreendeu bem, você fará isso ou aquilo”), me perguntei: “O que vou lhe dizer?”. E depois de pensar sobre isso durante muito tempo, percebi que não saberei o que lhe sugerir, porque não sei o que dizer a mim mesmo. Assim sendo, aos meus personagens, que são sempre tão infelizes, a única coisa que poderei oferecer será minha solidariedade: e assim poderei, por exemplo, dizer a um deles: “Escuta, não posso te explicar o que não sei, mas, em todo caso, te amo o suficiente e te ofereço uma serenata”. E assim, para Noites de Cabiria, pensei: quero fazer um filme que conte as aventuras de uma infeliz que, a despeito de tudo, espera confusamente, ingenuamente, por melhores relações entre os homens, simplesmente melhores relações; e ao fim do filme quero lhe dizer: “Escuta, fiz você passar por todo tipo de desgraça, mas você me é tão simpática que quero compor-lhe uma pequena serenata”. E depois, sobre essa idéia talvez um pouco ingênua, imaginei uma cena. Tratava-se de uma mulher, de uma personagem infeliz que, ao fim de uma aventura ainda mais terrível que as outras, deveria perder de maneira absoluta e definitiva sua confiança na humanidade que a rodeava. E então me perguntei: por que essa personagem, num dado momento, não pode se convencer de que há alguém que lhe diz gentilmente e com simpatia: “Você tem razão”? E assim essa personagem se tornou Cabiria, e suas aventuras se tornaram aquelas de uma prostituta que vive como um pequeno camundongo num meio aterrorizante, continuamente esmagada pela realidade, mas que atravessa a vida com inocência e aquela misteriosa confiança. Ao fim do filme eu a faço encontrar um grupo exuberante de pessoas bem jovens, de uma humanidade ao limiar da vida, que gentilmente, debochando um pouco mas com candura, exprime-lhe sua gratidão cantando uma canção. Foi dessa idéia que, finalmente, nasceu todo o filme.

No que concerne minha colaboração com Giulietta, posso dizer que Giulietta não é somente a intérprete de meus filmes, mas que ela é também a sua inspiradora; não entendo por isso que a ajuda que ela me traz seja semelhante àquela de Pinelli, de Flaiani, de Rondi, quero dizer inspiradora num sentido bem mais profundo, à maneira de uma musa. Isso equivale a dizer que a vida com Giulietta – o que penso disso, a idéia que faço dela, do que pode ser sua humanidade, do que pode ser seu sentido na minha vida – me inspirou A Estrada da Vida e Noites de Cabiria.



Federico Fellini

(Publicado em Cahiers du Cinéma nº 84, Junho/1958; traduzido do francês por Luiz Carlos Oliveira Jr.)


Noites de Cabíria (Le Notti di Cabiria)

1957 - Itália

Direção: Federico Fellini

Com: Giulietta Masina, François Perier, Amedeo Nazzari
Escrito por: Federico Fellini, Ennio Flaiano, Tullio Pinelli & Pier Paolo Pasolini


Preto e Branco, 117minutos.



No SESC (Endereço no topo da página)

Dia 19/05 às 19:30hrs

Entrada Grátis
Ao fim do filme, como sempre, seguirá debate sobre o mesmo



PS.: Para ver o que foi discutido nos filmes anteriores, visite a seção de Comentários aqui nesse blog no post do respectivo filme

2 comentários:

Anônimo disse...

Cabíria, enquanto personagem, acaba retomando de certa forma a discussão realizada sobre o personagem de Acossado (05/05), quando os dois (claro, cada um a seu próprio modo) determinam suas formas de vida, comportamento e desenvolvimento. Desta forma, os dois, estigmatizados pela marginalidade em que "foram colocados" e conscientes de suas condições, utilizam-se da mesma para relacionarem-se com o "mundo" através da diferença.

Podemos fazer esta leitura a partir do livro Estigma do antroplólogo Erving Goffman que realiza seu estudo a partir do diferente e seu grupo, do diferente e o outro, e do diferente em relação à sua própria diferença, levando em conta sobretudo, que este último ponto, ou seja, o relacionamento com a "causa" da marginalidade, no caso dos dois personagens, será o responsável pelas respostas que os mesmos darão para as situações em que estiverem envolvidos.

No caso de Cabíria, mesmo que estando consciente da sua condição, de mulher/prostituta, realiza-se enquanto sujeito a partir de uma espécie de "complexo de Cinderela" quando evidencia suas particularidades na relação com os outros, procurando o tempo todo por algum que possa recolocá-la "dentro da sociedade". Em muitos momentos isso fica muito claro, pois os homens com quem ela se relaciona, fora da profissão, apresentam as características necessárias para "tirá-la da vida", entre elas a fama e o dinheiro, o romantismo, o altruísmo e a honestidade.

Como última saída, e acredito que este seja o ponto principal da discussão implícita no filme, Cabíria procura a ajuda da Madonna, numa representação fantástica das duas condições. Ou seja, ela, impura, pecadora, marginal etc. (que incluisve se chama Maria) e a outra, figura mor daquilo que se exige de uma mulher "para casar": a virgindade e a pureza. Tanto o é que uma procissão passa por ela durante a noite durante o horário de trabalho numa espécie de chamamento ou sinal.

Essa relação entre a personagem e a Igreja é determinante para a leitura, pois traz à tona a diferença fundamental, colocada anteriormente, entre Cabíria e o personagem de Acossado, pois enquanto o último mantinha-se como diferente e manteve-se até quando sucumbiu à força por aquele amor que o "traiu", Cabíria quer a todo custo não só pertencer à "sociedade" como também participar como sujeito.

É então por este motivo, por este dissociação total entre ela e o mundo que ela aspira, que a mesma continuará acreditando numa possível mudança e sofrendo o golpe maior dado por Oscar.
Considerando esta linha de raciocínio e o final poético com a analogia entre a personagem e o Pierot da comédia de l´arte italiana, talvez Cabíria finalmente, após chegar ao limite de sua ingenuidade, acaba considerando-se como pertencente ao grupo e à vida de que queria sair.

Enfim, relacionando ainda o sociológo Émile Durkheim e seus estudos sobre a anomia / patologia social além das aspirações positivistas do bom funcionamento da sociedade, podemos dizer que as apropriações ideológicas deste pensamento acabam forçando os "marginais" a ansiarem decididamente - talvez por toda uma vida - o pertencimento real, realçando, por outro lado, também de forma definitiva o estigma de que são "portadores".

"Salve, Rainha, Mãe misericordiosa, vida, doçura e esperança nossa, salve! A vós abrandamos os degregados filhos de Eva. A vós suspiramos, gemendo e chorando neste vale de lágrimas. Eia pois, advogada nossa, esses vossos olhos misericordiosos a nós volvei, e depois deste desterro mostrai-nos Jesus, bendito fruto de vosso ventre, ó clemente, ó piedosa, ó doce sempre Virgem Maria. Rogais por nós Santa Mãe de Deus. Para que sejamos dignos das promessas de Cristo."
(Oração - Salve Rainha)

Anônimo disse...

Cabíria foi um divisor de águas na carreira de Fellini, deixando para trás o neo-realismo, que foi sua porta de entrada para o cinema e adentrando no que seria nomeado "cinema fantasmático", essa mistura entre fantasia e ilusão que seria a identificação do diretor daqui pra frente.

Outra detalhe que viria a ser o forte de Fellini nos anos posteriores, mas já aqui é mostrado com maestria é a visualização da sociedade no ponto de vista da personagem principal. Em uma cena bastante alegórica, Cabíria após confessar sua admiração pelo ator de cinema "Alberto Lazzari" (interpretado pelo quase anagrama Amedeo Nazzari), é obrigada a se trancar no banheiro enquanto a "namorada" do ator pede perdão e peça a noite em sua casa, durante a cena de amor de Alberto e a namorada, Cabíria observa tudo pelo buraco da fechadura, na qual Fellini se utilizando de um plano subjetivo e fazendo a música de Nino Rota soar alto, faz a representação do amor-romântico do cinema, o que estaria distante de Cabíria assim como a tela de cinema o é em relaçãoao espectador, um mundo de sonhos.

Filmado em 1957 o filme faz um ataque direto à Igreja o que também seria o forte de um dos roteiristas deste filme, o futuro diretor Pier Paolo Pasolini.
Porém a única cena cortada na época foi a do altruísta que distrubui comidas no meio da noite nas grutas miseráveis de Roma, por mais estranho que pareça, mas quando se assiste a fita, percebe-se claramente que enquanto a Igreja cobra pelas misas (em cena seguinte) "alguém" faz algo mais produtivo...

Enfim, Cabíria figura como uma das obras-primas de Fellini e talvez como a melhor atuação de Giullieta Massina, sua esposa, no papel principal, conseguindo aliar força e fragilidade como raramente se viu na sétima arte.