5.8.07

Fahrenheit 451 (François Truffaut) 1966

Neste sábado, dia 11/08 no SESC Cineclube Silenzio, 19:30hrs

Logo no começo de Fahrenheit 451, os créditos de abertura estão lá, mas não os lemos. Um narrador nos informa a ficha completa da equipe, atores, técnicos, diretor, sob imagens coloridas de diversas antenas de tevê espalhadas pelos telhados da cidade. Ali já sabemos que Truffaut quer colar a experiência de seu filme àquela mesma vivida no universo interior da narrativa, e se os personagens deste mundo futurista não podem ter acesso a qualquer tipo de material escrito, também o filme não o terá. Mais do que uma esperteza do diretor (o que não seria uma exceção, pois várias delas estão espalhadas por aqui), esta seqüência de créditos dará o tom da aproximação pretendida a essa história, na época já “mundialmente famosa” através do best-seller de Ray Bradbury. Interessa aqui menos uma fidelização ao relato original, onde acompanhamos o tormento de um agente da repressão que se vê envolvido com o próprio objeto que deveria combater, e mais a captura desta certa atmosfera atormentada que o trajeto do personagem criaria em torno de si. Não é à toa que este mesmo trajeto sofrerá uma alteração fundamental na relação entre livro e adaptação cinematográfica. Se com Bradbury já estaremos desde o começo instalados na perturbação de Guy Montag, ainda sem muitas razões mas claramente apontando para uma grande revolução pessoal (a primeira frase diz “Queimar livros era um prazer”, com o verbo no passado), Truffaut irá apresentar seu protagonista como um legítimo soldado do regime, obediente aos mandos de seu capitão, referindo-se a si mesmo na terceira pessoa, cumprindo o dever de queimar livros com o prazer atualizado pelo tempo presente. Contra a narrativa vertical, o arco: uma transformação percebida pelo filme, de homem cego pela lei equivocada a defensor da causa literária, Fahrenheit 451, dantesco, vai do inferno ao paraíso, quer o elogio da iluminação.

Aquilo que Truffaut percebera como um clima repressor será integralmente absorvido pelo tecido do filme, e a operação conseqüente àqueles créditos iniciais falados será a filiação de Fahrenheit a um gênero clássico, ao suspense. A influência de Alfred Hitchcock é decisiva, e estamos aqui no início da relação pessoal que desembocaria na grande entrevista-livro lançada algum tempo depois, mas nem era preciso tanto. A trilha sonora ostensiva de Bernard Hermann, o modo de encenar seqüências banais como se por trás de cada uma houvesse a chave para o mistério da trama, até mesmo algumas citações literais, tudo está lá para anunciar esta grande influência, e também deixar evidente o quão difícil ela torna a vida do influenciado. Como repetiria dois anos depois na tentativa mais declarada de aproximação com o mestre, em A Noiva Estava de Preto, Truffaut se atrapalha incrivelmente nas cenas de alguma ação, e se em 1968 transformaria a crueldade de Jeanne Moureau ao empurrar um amante sacada abaixo em um momento quase-cômico, aqui torna o ataque vingativo de Oskar Werner contra seu chefe em um exercício de como não se decupar uma rajada de lança-chamas.

E como nesses detalhes de realização, todo o filme estará envolvido por uma série de primarismos; o peso do gênero, afeito a regras e esquemas restritos, será eventualmente grande demais para que qualquer tentativa de respiração própria possa ter algum efeito. Há um paradoxo fundamental no livro de Bradbury que passa ao largo de Truffaut. Contando uma história onde a literatura é perseguida e destruída por sua possibilidade de informação e elevação intelectual, a própria existência do livro no qual esta história aparece já é, por si, uma espécie de resistência, uma afronta a esse regime imaginário e tão assustadoramente possível, uma defesa tácita e eficientíssima daquilo que a trajetória de Montag pretende significar. Em Fahrenheit 451, o filme, somos lembrados o tempo inteiro da grande importância que os livros têm na história da humanidade, num exercício de tautologia pedagógica que beira a histeria.

Diagnosticar o futuro com males que estão na pauta do presente é uma constante na maior parte dos filmes que se arriscam na previsão. Mesmo o Alphaville, do parceiro de geração Jean-Luc Godard, realizado um ano antes de Fahrenheit, sofre desta valorização desmedida de suas próprias profecias sobre o mundo. Mas lá, antes do conteúdo alarmista, da bandeira agitada, estava na linha de frente a própria impossibilidade de uma mise-en-scène do futuro que não se impusesse os problemas do presente (diante de uma longa cena de conflito entre Eddie Constantine e Anna Karina num quarto de hotel, o que parece estar em questão não é o pesar da confirmação destrutiva deste mundo pós-apocalíptico, mas sim se este mesmo pendor para o cataclismo impedirá também a existência de planos-seqüência tão nervosos quanto aquele). Truffaut, ao contrário, é vítima da mensagem. Não perde a piada de ver o Capitão Beatty dizer, com consternação, que todos os livros precisam mesmo ser queimados, até mesmo aqueles que os servem tão bem, como o Minha Luta de Adolf Hitler que segura com uma das mãos nesse momento, porque é importante não deixar em suspenso que todos aqueles bombeiros empertigados são nazistas de primeira classe. Tudo acaba sendo, no fim das contas, uma questão de repertório.




FAHRENHEIT 451


François Truffaut, (Inglaterra/França) 1966


Oskar Werner (Guy Montag)
Julie Christie (Linda / Clarisse)
Cyril Cusack (Capitão)
Anton Diffring (Fabian)
Anna Palk (Jackie)
Ann Bell (Doris)
Caroline Hunt (Helen)
Jeremy Spenser
Bee Duffell
Alex Scott
Michael Balfour


Cor, Língua : Inglês, Legendas em Português 112 minutos



6 comentários:

Ana Paula disse...

Excelente história.

Me lembrou de longe (mas beeeeem de longe mesmo) o livro infantil O Mistério de Feiurinha, de Pedro Bandeira, e o conto A Puta com Ph'D, do Woody Allen.

Anônimo disse...

Fahrenheit 451 foi melhor recebido do que eu esperava, talvez por aquele velho conceito vindo dos anos 1920 onde o cinema idolatra (ou é o complemento de) uma outra arte, (obviamente antes do Expressionimo Alemão e do Impressionismo Francês) e a arte em questão sendo a literatura torna-se catártica aos demais.
Apesar de não ser o melhor filme de Truffaut, devo dizer que 451 é talvez o mais acessível e o único falado em inglês, isso o deixa mais próximo do cinema hegemônico e também por isso mais degustativo, em ritmo de conto de fadas.
Tanto no romance quanto no filme são criadas subversões às leis empregadas antes da ditadura, o que deu liberdade a Truffaut para brincar, um exemplo disso é a lei da gravidade que não existe para os não-letrados, fazendo quase um apêndice à famosa frase de Descartes mais ou menos como, "se ignoro, não existe".

Truffaut até revelou não ter gostado do filme falado em inglês, preferindo a versão dublada em francês. O fato é que o filme como é, acabou servindo de inspiração para outros diretores no tema, de Woody Allen a Stanley Kubrick, e permanece como símbolo de uma Nouvelle Vague bem acessíval ao público médio.

Gianfranco Marchi disse...

Realmente, não é o melhor Truffaut. Existe algo nos diálogos em inglês que, de tão artificiais, soam "ensaiados". O fato é que boa parte do elenco não dominava a língua, daí a estranheza. Entrementes, justamente esse artificialismo da língua adiciona um elemento curioso à estória, vez que trata de uma sociedade à procura de um "zero absoluto" cultural (no caso a literatura).

Oskar Werner brigou também com o diretor durante as filmagens e, obviamente, tal fato deve ter ficado refletido na contrição do resultado final. De novo, a atuação "sem vontade" do protagonista também oferece uma dimensão maior ao personagem, inicialmente apático e conformista.

Curioso que, ao contrário de diretores como Kubrick (2001), Truffaut não cria, em termos estéticos, um futuro TÃO diferente da época em que o filme foi realizado. Talvez para produzir uma crítica ao momento de alienação e hedonismo de uma parcela da geração de 60/70 (o que ele teria então a dizer da nossa?).

Anônimo disse...

Fahrenheit 451 foi muito bem aceito entre o público presente esta semana, talvez por tratar de forma poética a censura à produção intelectual que a geração passada sofreu "fisicamente" e a que sofremos ainda hoje quando se fala de condições reais na difusão e acesso de alguns materiais ainda malditos.

É comum ouvir frases do tipo: "Por que você quer ler fulano? Acredito que você ainda não tenha condições de compreendê-lo." vindas de "detentores" de saber acumulado que pensam estar no direito de definir o processos evolutivo de alguém, considerado ou não, até tal momento, inapto. Quem quiser puxar pela memória figuras memoráveis de suas graduações (ou outras experiências educativas) com certeza encontrará alguém que se encaixe no perfil.

Bom, desabafos à parte, penso que Truffaut foi muito sábio em sua adaptação fílmica, ao discutir a força coercitiva da sociedade neste sentido, pois em nenhum momento se fala de economia, de política, de governo e outras constituições do tipo, que na nossa realidade cotidiana acabam tornando-se entidades míticas, distantes e porque não, "inexistentes". Ora, ao centralizar o mando na televisão (com clara referência ao Big Brother de Orwell) e no corpo de bombeiros, temos a magnífica ilustração da funcionalidade de Durkheim no que diz respeito à sociedade como um organismo e suas patologias fortemente combatidas; e também o fato social da moralidade e da ordem tal qual o sociólogo francês coloca, ou seja, a regência do comportamento vinda de forma exterior e coercitiva.

Resumindo, o que fica claro neste sentido é a organização social vinda "de cima" em conformidade aos princípios que são desconhecidos da população geral, que entretanto devem ser obedecidos para um bom funcionamento da mesma.

Entendo assim, que a proibição da leitura é dada justamente para a verdadeira manutenção desta ordem, pois aqueles que possuem o conhecimento inciam uma série de questionemtos, que por sua vez, desequilibram o "contrato" estipulado pondo em risco a organização. A partir daí, fica clara a necessidade de combater os insurgentes (pela força e pela ideologia pregada aos demais) configurando o que Durkheim chama de solidariedade mecânica. Por outro lado, na organização clandestina de tais insurgentes em nome de suas sobrevivências (e da sobrevivência do conhecimento também) há o que pode ser definido pelo conceito de solidariedade orgânica, onde há espaço para a ação individual.

"Onde se queimam livros, acaba-se queimando pessoas."
(Heinrich Heine)

Unknown disse...
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Unknown disse...
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