5.2.08

Ciclo # 4 - François Truffaut

Do Dia 11/02 a 15/02
No SESC Cineclube Silenzio
Sessões às 20h
ENTRADA GRATUITA





11/02 Os Incompreendidos (Les 400 Coups, 1959, 93min)

Os Incompreendidos não é só o primeiro longa de Truffaut, filmado em 1959: é um dos títulos seminais da nouvelle vague e um dos melhores filmes de todos os tempos.
O ator-mirim Jean-Pierre Léaud participou de cinco filmes de Truffaut
Trata-se de uma obra-prima. Parafraseando um comentário de François Truffaut sobre Os Pássaros, de Alfred Hithcock, o cinema foi inventado para que semelhante filme fosse feito.
Fotografado em preto-e-branco, Os Incompreendidos acompanha o percurso de um garoto de 12 ou 13 anos pela Paris do final dos anos 50.
A criança está sempre se metendo em encrencas, e vem daí o título original, Les 400 Coups – uma expressão idiomática francesa que pode ser traduzida por “pintar o sete”.
Antoine Doinel mata aula e mente que a mãe morreu, ergue um altar em honra de Honoré de Balzac e quase mete fogo na casa, rouba e se arrepende, é preso e foge.
O roteiro, do próprio Truffaut, em parceria com Marcel Moussy, recusa o clima piegas que costuma lambuzar filmes sobre infância.
É quase um documentário, profundamente alegre em certas partes e triste, suave, melancólico no seu todo.
Passados quase 40 anos, o final deve se manter surpreendente. É um dos filmes mais simples e mais belos em cento e poucos anos de cinema.

Truffaut insistiu no personagem

O homem que amava as crianças não gostava de admitir o quão autobiográfico era o seu primeiro longa-metragem.
François Truffaut (1932-1984) não gostava de admitir, mas teve uma infância bem parecida com a do protagonista de Os Incompreendidos. Amargou problemas com os pais, aplicou pequenos golpes e acabou confinado num reformatório juvenil.
O homem que amava o cinema chegou a fazer do personagem Antoine Doinel e de seu intérprete, o ator Jean-Pierre Léaud, uma espécie de alter ego. Doinel, sempre interpretado por Léaud, voltou em outros quatro filmes ao longo de 20 anos, num caso único de insistência no triângulo diretor-personagem-ator: Antoine e Colette (1963), Beijos Proibidos (1968), Domicílio Conjugal (1970) e O Amor em Fuga (1979).
O homem que amava as mulheres repetiria em uma dezena de outros filmes sua devoção aos temas da infância e da solidão. Numa entrevista, chegaria a declarar que não conseguiria fazer outro filme “tão eficaz” como Os Incompreendidos:
– Fico muito surpreso quando me dizem que se trata da solidão de uma criança. É exatamente isso o que eu queria.(Eduardo Veras, Agência RBS)


12/02 A Noite Americana (Nuit américaine, La, 1973, 115min)

Um dos filmes que melhor representa as loucuras que se passam em um set de filmagem. Um ator que fica deprimido porque sua noiva sai com um dublê, uma atriz que se entregou às bebidas e não consegue lembrar de suas falas e muitas outras confusões, que o diretor deve fazer de tudo para contornar, até gravarem uma das cenas mais importantes do filme: a que o dia deve ser transformado em noite artificialmente.
O filme mostra Ferrand, um cineasta, durante a produção de um filme chamado Je vous presente Pamela, seus imprevistos, atores com ego inflado, problemas de bastidores, e as soluções improvisadas para concluir o projeto a tempo, como por exemplo, furtar um vaso do hotel onde o elenco estava hospedado para compor o cenário da casa da personagem "Pamela".
Durante as filmagens de Je vous presente Pamela, Alphonse e Julie, os atores principais, têm um caso, mas ela não leva o caso adiante. Com ciúme, ele conta ao marido dela, que invade o set de gravação, enquanto o ator ameaça abandonar o projeto — e esse é só um dos problemas que Ferrand tem de enfrentar.


13/02

Jules e Jim (Jules et Jim, 1962, 105min)


"Jules e Jim" é um dos mais apreciados filmes da nouvelle vague francesa dos anos 60, uma reflexão meio amarga (mas que começa leve e bem humorada) sobre as vicissitudes e dificuldades das relações amorosas, os desencontros e as dúvidas, tudo isso sublinhado pela citação de "As Afinidades Eletivas", de Goethe.


O alemão Jules (Oskar Werner) e o francês Jim (Henri Serre) são dois grandes amigos em perpétua comunhão, dividem tudo, até as namoradas, e cuja amizade nem a 1ª Guerra Mundial, em que lutam em lados opostos, consegue destruir.


Mas Jules se casa com a estranha Catherine (Jeanne Moreau), por quem Jim também se apaixona, o que complica o já confuso e infeliz casamento do amigo.


O diretor François Truffaut (1932-84), bem no espírito da época, compôs tudo de maneira espontânea e despojada, com uma montagem fragmentada e vários toques criativos na narrativa, como legendas que aparecem de repente no meio da imagem ressaltando diálogos.


O filme é um cult absoluto, unanimemente elogiado e ponto alto da carreira de musa de Moreau, na época namorada do diretor. Foi homenageado por Paul Mazurski como Willie e Phil ("Willie and Phil", 1980) e mencionado ou referenciado em dezenas de outros filmes.




14/02
Atirem no Pianista (Tirez Sur Le Pianiste, 1960, 85min)


Dois bandidos, em pleno ato criminoso, conversam descontraidamente sobre temas fúteis – e até engraçados – que nada têm a ver com o crime que está sendo cometido. Alguém pensou em Pulp Ficition – Tempo de Violência? Engano. A sarcástica cena está no filme Atirem no Pianista, que François Truffaut fez em 1960, ou seja, 34 anos antes de Tarantino.


Neste seu segundo longa, Truffaut já deixa clara sua paixão pelo cinema noir americano. Em ritmo de novela policial, ele mostra a história de Charlie (o ator, cantor e compositor Charles Aznavour), pianista que toca num barzinho decadente, mas que tem talento suficiente para ser um grande concertista. Por que? Os flash backs explicarão. Aliás, mais importante que conhecer a trajetória e os segredos de Charlie é curtir o estilo leve e despojado dos primeiros anos de Truffaut. Através de diálogos e movimentos de câmera repletos de agilidade, o então jovem diretor (28 anos) parece se divertir muito com o que faz. Não se prende a normas rígidas, mistura sem cerimônia a tragédia e a comédia, inova, e já profetiza os ares de liberdade estética que tomariam conta do cinema experimental dos anos 60 e 70.


A partir do livro do norte-americano David Goodis, Truffaut conta, numa só tacada, uma história de amor (o pianista Charlie se apaixona pela garçonete Lena, vivida por Marie Dubois, para o desespero e ciúmes do dono do bar), um conto policial (o irmão de Charlie inadvertidamente o envolve com o mundo do crime), e ainda tem um tempinho para o riso (a cena onde o criminoso diz que sua mãe pode “cair mortinha” é impagável). Tudo com charme e descontração que provam, mais uma vez, que Truffaut foi o menos hermético e o mais digerível dos cineastas da época da Nouvelle Vague francesa.

A trilha sonora é de Georges Delerue, que mais tarde comporia importantes trilhas do cinema, como O Inconformista, Julia, Platoon e dezenas de outras.




15/02
Beijos Proibidos (Baisers Volés, 1968, 90min)


Ao estrear no cinema com o longa Os Incompreendidos (59), François Truffaut acertou as contas com o passado e a gravidade de sua infância. Em Beijos Proibidos (68), o diretor reencontra seu protagonista e alter ego, Antoine Doinel (Jean-Pierre Léaud), mais crescido e iluminado por uma aura de leveza, aprimorando em sua carreira as vertentes da comédia e da ironia romântica que foram algumas de suas marcas registradas, aqui com a colaboração de roteiristas como Claude de Givray e Bernard Revon.
Para fazer um estudo sobre o personagem de Doinel, não poderia haver melhor oportunidade, aliás, do que esta semana, quando se encontram em cartaz tanto Os Incompreendidos quanto Beijos Proibidos - este último acompanhado do curta Antoine e Colette (62), episódio desligado de Amor aos 20 Anos, um longa que uniu originalmente os trabalhos dos diretores Marcel Ophuls, Renzo Rossellini, Andrzej Wajda e Kon Ishihara. Assim, estão nas telas do cineclube os três primeiros momentos de Doinel, que ainda teria duas outras encarnações patrocinadas por Truffaut nos anos seguintes.
Em Antoine e Colette, o rapaz, já fora da casa dos pais, trabalha na fábrica de discos Philips e mora num quartinho. À noite, sai com o amigo René (Patrick Auffray, o mesmo de Os Incompreendidos), com quem troca confidências sobre seus sonhos amorosos. Estes ganham substância na tentadora Colette (Marie-France Pisier), mocinha que freqüenta o circuito dos concertos noturnos estudantis. A afinidade musical dá esperanças a Antoine, que termina por mudar-se para o hotel em frente ao apartamento de Colette. Mas suas expectativas são frustradas pelas diferentes intenções da moça. No final das contas, os pais dela gostam mais de Antoine do que ela.
A mesma ironia se repete em Beijos Proibidos, que parte de onde acabou Antoine e Colette. A frustração amorosa levou Antoine a alistar-se no Exército, onde foi o soldado mais relapso de que seus superiores tiveram notícia, acabando na prisão. Desligado a bem do serviço, ele volta à vida civil e à casa de uma moça de seu passado, agora rebatizada como Christine (Claude Jade). Esta também é esquiva ao interesse de Antoine e está fora, em viagem com amigos. Antoine inicia, então, uma peregrinação pelos mais variados empregos - porteiro noturno de hotel, detetive, técnico de televisão - que o colocam no centro de aventuras amorosas, como com uma estonteante mulher casada, Fabienne Tabard (Delphine Seyrig).
Como sempre, Truffaut misturava sua vida pessoal às histórias que contava. Mais do que isso, unia amor e trabalho quase sem fronteiras. Ao filmar Antoine e Colette, aprofundou uma crise matrimonial já iniciada por seu caso com Jeanne Moreau em Jules e Jim, ao envolver-se com a protagonista do curta, Maria-France Pisier, que na época tinha 17 anos e meio. Apesar disso, o casamento com Madeleine Morgenstern ainda sobreviveu alguns anos.
Feito seis anos depois, Beijos Proibidos constituiu um grande sucesso comercial do diretor, o que foi até uma surpresa. Afinal, naquela Paris de 1968 o ar que se respirava era todo político, ainda no rescaldo da histórica rebelião estudantil que semeou barricadas e esperanças de revolução em todas as esquinas da cidade. Entretanto, talvez porque a revolução tivesse fracassado, o público encantou-se pelas aventuras de Antoine, que não são todas tão doces nem pueris como se supõe à primeira vista, apesar de embaladas pela canção-tema do popularíssimo Charles Trénet, Que Reste-t-il de nos Amours?
Pode-se enxergar no jovem Antoine um proletário que tenta mas nunca consegue a ascensão social que deseja. Além disso, a presença de personagens no limite emocional, como a mulher casada (Delphine Seyrig) que propõe a Antoine uma aventura única, e o homem desconhecido (Serge Rousseau) que se declara a Colette em busca do amor definitivo, pontuam esta paisagem de educação sentimental de espinhos existenciais um tanto complexos e adultos. Truffaut, ele mesmo dizia, era um romântico que desconfiava do romantismo.

Um comentário:

CineClube Silenzio disse...

Todo ser humano é presa de uma contradição básica: queremos o Amor e a Felicidade eternos, como num conto de fadas, mas a vida nos ensina que a morte põe um doloroso ponto final em tudo. Este paradoxo, essa defasagem entre o Absoluto dos nossos sonhos e o Provisório da vida, está no centro de toda a obra de François Truffaut. Ou, em suas próprias palavras:

“(…) Tudo o que é do domínio afetivo reclama o Absoluto. O filho quer a mãe por toda a vida, os amantes querem se amar por toda a vida, tudo em nós pede o Definitivo – enquanto que a vida nos ensina o Provisório. Na medida em que o tempo passa, torna-se conveniente esquecermos nossos mortos, pois, esquecendo-os, é a nossa própria morte que esquecemos. (…) O verdadeiro dilaceramento reside na necessidade de aceitarmos o Provisório – para sobrevivermos”. ( O Cinema Segundo François Truffaut , Editora Nova Fronteira, 1988).

Sendo assim, a obra de Truffaut, toda centrada no Amor, não podia estar mais distante da noção equivocada que temos de Romantismo no cinema. Em seus filmes, o Amor, este sentimento nobre e que nos eleva ao sagrado, não significa salvação , e sim destruição.

Em seus primeiros filmes, Truffaut se preocupava menos com este aspecto do que com a necessidade de equilibrar os personagens, fazer o público gostar de cada um deles igualmente – afinal, o Amor é o único aspecto da vida onde todos são rigorosamente iguais. Em Jules e Jim - Uma Mulher para Dois , por exemplo, Catherine (Jeanne Moreau) ama Jules (Oscar Werner) e Jim (Henri Serre) ao mesmo tempo. Ao contrário da maioria dos filmes, em que um deles é mostrado como ridículo, egoísta, mau, e o outro é belo, justo, perfeito (assim sabemos por quem vamos “torcer”) Truffaut coloca os dois amigos em pé de igualdade perante o espectador. Ambos amam Catherine, ambos a merecem, e ela deseja ambos. Como este dilema é resolvido? Os três personagens não são mostrados como “pecadores” ou “imorais”: é que a moral tradicional simplesmente não serve para eles. O que eles fazem então é buscar uma nova moral, uma nova forma de viver, uma nova família, morando os três juntos num chalé em pleno campo. O desafio de Truffaut aqui era encenar uma história indecente com a suavidade de um conto de fadas, sem atribuir culpa aos personagens, fazendo o público cúmplice de um ménage à trois consentido.

Mas mesmo nesta atmosfera de leveza, os personagens de Truffaut se entregam ao lado mais escuro do Amor: a Posse. Queremos tomar conta do que é nosso, trancá-lo a sete chaves, impedir que voe para longe de nós. E a única maneira de consegui-lo é, paradoxalmente, através da Morte. Como crianças egoístas, os amantes de Truffaut preferem destruir seu objeto de desejo a perdê-lo. Esta é a maior contradição do Amor segundo Truffaut: se levado às últimas consequências, ele destina o ser amado à destruição. Só a Morte, o Absoluto em si mesmo, pode concretizar o “felizes para sempre” do conto de fadas.

Com o passar do tempo, a obra de Truffaut vai assumindo cada vez mais este lado cruel. Quase dez anos depois de Jules e Jim , ele faria Duas Inglesas e o Amor , invertendo a equação do triângulo amoroso: desta vez, um homem é amado por duas irmãs. Claude (Jean-Pierre Léaud) não consegue se decidir entre Anne (Kika Markham), e Muriel (Stacey Tendeter). Anne e Muriel são opostas: a primeira representa o senso prático, a vida imediata, o Provisório, enquanto a segunda é o idealismo, o romantismo, o Absoluto. Mas Claude não pode se fixar em nada, ele é por demais livre, por demais “leve” para se prender a alguém. Pela primeira vez em sua obra, esta “liberdade” é mostrada como algo egoísta e cruel. Ao final, Claude fica sozinho. Truffaut parece dizer que quem brinca com os sentimentos acaba se transformando numa marionete do destino.

Ao contrário de Jules e Jim , em que o Amor era mostrado de uma maneira leve e arejada, Duas Inglesas e o Amor mostra o lado carnal e sujo da relação amorosa: Truffaut não nos poupa das lágrimas, do vômito, do escarro, do sangue virginal. Os fluídos corporais são pequenos lembretes mandados pela Morte de que ela nos espera logo ali na esquina. Aos personagens, só resta crer no Amor. Crer é a palavra chave; para Truffaut, o Amor é uma religião.

Este amor mostrado de forma litúrgica, como algo que nos eleva mas também nos condena, remete à literatura do século XIX, que exerceu grande influência sobre Truffaut. Jules e Jim e Duas Inglesas e o Amor são histórias situadas no passado; isto torna mais fácil para o público entender e aceitar estes sentimentos avassaladores. Mas, quase ao final de sua vida, Truffaut aceitou o desafio de trazer esta visão do amor para nossos dias, fazendo seu filme mais atordoante: A Mulher do Lado . Nada de saias rendadas, coches, belas casas de campo, velas, castiçais, cartas de amor. Bernard (Gerard Depardieu) e Mathilde (Fanny Ardant) vivem no presente, entre telefones, carros, carrinhos de supermercado e quadras de tênis.

Tudo começa quando Bernard e Mathilde se reencontram anos depois de seu caso de amor. Ambos agora estão casados e vivem com suas respectivas famílias. Mas não é fácil esquecer o passado: os amantes voltam a se encontrar, até que, numa cena chocante, o marido de Mathilde e a mulher de Bernard descobrem tudo. A partir daí, os personagens são obrigados a “voltar à razão”, à rotina que tinham antes. Bernard consegue; Mathilde não. Ao contrário dos longas anteriores, não existe triângulo amoroso. No início do filme, Bernard e Mathilde estão numa relação a dois (os personagens dos cônjuges não têm importância dramática). Da metade para o final, Mathilde se vê sozinha com seu amor e perde a referência da realidade. Em uma das cenas mais dilacerantes da obra de Truffaut, Mathilde conversa com o seu psicanalista, que diz a ela que ela precisa “esquecer”, deixar para trás a dor. Mathilde, com um olhar perdido, diz que ele não entende nada. O que ela sente, o que a corrói, é a mesma matéria de que são feitas as canções de amor. Para entender sua dor, é preciso levar a sério os versos rasgados de “Ne Me Quitte Pas”.

Ao trazer o amor romântico para a atualidade, Truffaut condenou seus personagens à solidão absoluta. Nada pode ser mais triste e patético que alguém que não consegue esconder seus próprios sentimentos. Mais uma vez, a Morte é o refúgio final do Amor, num jogo sem vencedores.

A Mulher do Lado é o filme mais belo e trágico de Truffaut, porque acontece inteiro ao sol, em ambientes modernos, onde os coches são trocados por carros velozes e as cartas se transformam em telefonemas de amor. Passa o tempo, mas a busca dos amantes pelo Absoluto enquanto fogem do Provisório continua a mesma de sempre. Ao fazer este filme, Truffaut já estava doente do câncer que o matou três anos depois. A morte levou o Homem, mas não fez esquecer sua obra. Os filmes de Truffaut continuam vivos, vibrantes, testemunhos do dilema tragicômico da Humanidade: correr a vida inteira atrás do Amor para cair nos braços da Morte.